quinta-feira, 19 de maio de 2016

NÃO APENAS PALAVRAS PEQUENAS

"Pode me faltar tudo na vida: 
Arroz, feijão e pão"
Pode me faltar tudo na vida 
Mas amor e teatro eu não deixo faltar não!

(Recortes de "Cachaça", Almir Rouche)



Estamos nesse intenso desenvolvimento da "Abertura de Processos Criativos", o evento em que as Artes Cênicas mostra a sua cara, mas nosso trabalho não é só glamour, na verdade seria até ofensivo dizer que o tem, o nosso trabalho é TRABALHO, e isso inclui treinos desgastantes, abrir mão dum fim de semana, fazer leituras de textos, e fantasiar, se caracterizar, se preparar e ir para o semáforo pedir patrocínio alheio, dentre outras diversas atividades que estão nas entrelinhas de eventos como este. 

      Nesta aula nos preparamos para sairmos pela faculdade e divulgarmos a abertura, além de pedirmos ajuda  para financiar alguns acessórios de nosso figurino. No cineteatro preparamos estas marchinhas de carnaval. 







      Primeiro ouvimos, depois cantamos à capela, depois com os instrumentos, depois com dançamos e esbanjamos das nossas corporificações provocadas pelos acessórios diversos que levamos, que na verdade eram nossos elementos de estranhamento, máscaras, perucas, roupas, etc. 






     Antes de sairmos para o Centro de Vivência da UVV, ainda tínhamos de discutir a respeito de um fantástico texto de Jorge Larrosa Bondiá, "Notas sobre a experiências e o saber de experiência".  Senti apreço pelo conteúdo e principalmente pela preocupação do autor em assegurar o entendimento do leitor discorrendo o assunto de maneira pedagógica fazendo retornos ao que já havia sido dito quando necessário, utilizando-se de reflexões filosóficas e sociais para tratar do tema, e principalmente se utilizou de uma características louvável na escrita de um texto, a apresentação dos significados e gêneses das palavras-chave. O bom escritor, humano e que pratica a ética da alteridade, ou seja, utiliza-se da faculdade de colocar-se no lugar do outro (esse outro seria o leitor), escreve com a preocupação de que seu trabalho seja bem compreendido. Considerando que em determinado momento Bondiá (2002) abre espaço para tratar da própria palavra, não se espera formatação estrutural diferente de um texto que visa o esclarecimento da própria palavra. Meus parabéns, antes de cuidarmos do discurso sobre o material. 

     Com maestria, Bondiá (idem) fala de opostos, em todo texto ele contrapõe os termos informação e experiência, pontuando basicamente que a informação não constrói o saber, mas a experiência gera esse saber, mais tarde o autor nos esclarece sobre a gênese desses termos no ponto de vista social e filosófico, ampliando a visão do leitor a respeito do que exatamente vem a ser experiência e informação. 

     Experiência seria o tempo de trabalho em determinada empresa? Quantos anos de vida foram vividos? Afinal de contas, a quantidade de informação que temos garantem-nos a experiência? E mais, qual é o contexto social no qual estamos inseridos? O que ele privilegia, afinal de contas? Informação? Experiência? Temos alguma problematizações para direcionar nosso discurso. 

       Primeiramente gostaria de pontuar que a experiência não pode ser nada menor que nossos atravessamentos, aquela que perpassa sobre nossos afetos e nos deixam marcas, vestígios, sinais, sintomas, despertamentos, inquietações. Não é possível a experiência sem a nossa ação psicofísica, sem essa integração da internalidade com as externalidades. Quero me apropriar desse termo stanislavskiano para elucidar a construção de uma experiência: 

       Zaltron (2010) nos lembra que Stanislavski advogava que uma ação verossímil e impregnada de verdade é originada a partir de uma integração psicofísica, que por sua vez atravessam o ator, impulsionam um "eu" circunstanciado, dilatando a ação do ator. Podemos perceber que o ator só consegue imprimir verdade quando algo lhe afeta. Quero defender que, se o ator dispor apenas de um roteiro (o polo físico, objetivo) e não construir a sua forma de atuação, suas falas internas, seus monólogos interiores, sua relação cênica com o material (o polo psíquico, afetivo) não é possível encenar uma verdade, porque não houve integração entre os polos. 

      Podemos considerar que a Informação corresponde ao polo físico e a experiência ao polo psicoafeitivo. A informação por si só não gera experiência. Bondiá (2002, p.2) pontua que "ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência", porque ela cancela as possibilidades de experienciar, de vivenciar, de experimentar. 

      A respeito dessa não-experienciação podemos justificar baseada na atual cultura em que estamos inseridos, a "cultura do já", a cultura que endeusa a informação, a tecnologia, o capitalismo, o consumismo. Uma cultura que se desprendeu dos afetos, dos valores, ou melhor, que vive outros valores. É preferível a comodidade. A comodidade de um tour online pelo Louvre, viajar para qualquer lugar sem sair do lugar, andar de montanha russa através de tecnologia 6D... ir a shows para quê? A eventos culturais por quê? Por que ir à igreja aos domingos se os cultos são filmados ao vivo? Por que se incomodar convivendo? 

      A grande verdade é que a informação torna a experiência fugaz. Percebo uma dualidade a respeito de uma mesma ideia: 


"E o pensamento é o fundamento
Eu ganho o mundo sem sair do lugar
Eu fui para o Japão
Com a força do pensar
Passei pelas ruínas
E parei no Canadá
Subi o Himalaia
Pra no alto cantar
Com a imaginação que faz
Você viajar."

      Essa música "Pensamento", de Cidade Negra um dia me foi apresentada numa sessão filosófica na minha graduação em Pedagogia, para ilustrar o poder que o pensamento possui, o quanto ele é capaz de fazer, de transitar entre o mundo dentro e o mundo fora. A letra faz sim jus ao seu objetivo de descrever o que somos capazes por meio da imaginação. Em contrapartida, ao inserirmos a outra parte da dualidade desse discurso, podemos dizer que essa música também diz respeito às mazelas da atual sociedade. Considerando o mundo imediatista mediado pela informação, percebemos a presença do pensamento, mas cada vez mais a ausência de imaginação. O mundo é objetivo. Retrocedemos, nossas crianças são novamente depósitos de informações. Somos uma sociedade arcaica melhorada. 

      Quero apresentar fragmentos da música "Vivo", de Lenine, em que na letra esse grande compositor dá características do homem, mais precisamente desse homem filho dessa cultura do já. 


"Precário, provisório, perecível
Falível, transitório, transitivo
Efêmero, fugaz e passageiro:
Eis aqui um vivo
Eis aqui um vivo

Impuro, imperfeito, impermanente
Incerto, incompleto, inconstante
Instável, variável, defectivo
Eis aqui um vivo
Eis aqui

E apesar
Do tráfico, do tráfego equívoco,
Do tóxico do trânsito nocivo;
Da droga do indigesto digestivo;
Do câncer vir do cerne do ser vivo;
Da mente, o mal do ente coletivo;
Do sangue, o mal do soropositivo;
E apesar dessas e outras,
O vivo afirma, firme e afirmativo:
“O que mais vale a pena é estar vivo”

Não feito, não perfeito, não completo,
Não satisfeito nunca, não contente,
Não acabado, não definitivo:

Eis aqui um vivo

Eis-me aqui"


      Bondiá (2002) continua a me causar orgasmos intelectuais quando nos faz chegar à conclusão de que somos constituídos de palavras. Nós somos palavra. Como pontuou a professora Rejane nessa aula, "não somos feitos, não usamos, SOMOS PALAVRA". Isso nos interessa enquanto seres humanos, enquanto seres viventes, dotado de palavras. 


"Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,
creio que fazemos coisas com as palavras e, também,
que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas

a partir de nossas palavras."
(BONDIÁ, J. L. Notas sobre a experiências e o saber de experiência, 2002)

     A palavra nos interessa ainda mais no trabalho atoral, porque toda a nossa construção é pela e através dela, a fala interna é palavra, a subjetivação é palavra, a escrita do corpo, do blog é palavra, os recortes de contextos ficcionais, a necessidade de verbalizar um quem, onde, o quê... Stanislavski fazia perguntas. A palavra nos arrasta, "as palavras produzem sentidos, criam realidade e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação" (BONDIÁ, 2002, p.1-2), nesse sentido, quando recortamos uma homem moribundo mal dizendo da vida, nós somos aquela palavra, o imaginário enquadra-se naquela palavra. 

     Historicamente o mundo viveu e ainda vive diversas novidades, criações e construções no que tange às estéticas teatrais, ind'assim, "as experiências contemporâneas, mesmo as mais audaciosas, não inventaram um teatro sem texto" (ROUBINE, 1998, p. 70). Nós atores estamos cercados desse universo silábico, simbólico, letrado, terminológico, vocabular.

      A construção do ator é palavra e o teatro é democrático, ele possui um vasto lugar para a liberdade de ser, agir e criar. Precisamos tecer mais, inventar mais palavras, construir. Dessa palavra é que vai nascer o pensamento, construimos o pensamento enquanto inventamos palavras, tecemos, dobramos, arriscamos, impomos, dali vai surgir uma imagem, desse tecido vai surgir emoção, ideia, associoação, vamos tecendo um fio de palavras como uma aranha, que faz seu meticuloso trabalho até originar o belíssimo monumento do seu lar, do seu sustento, o seu chão, assim criamos a nossa casinha de ator, ali vamos procriar o nosso ser-ator, nosso eu-cênico, vamos amadurecer nosso bios-cênico. 

     Colocar no papel, verbalizar leva-nos a compreender, organizar o pensamento e nas artes cênicas temos essa liberdade de criação. Na cabeça fica tudo amplo, dilatado, confuso, mas quando paramos para verbalizar, transformar em signos, acabamos refletimos sobre esse conteúdo isurgente. Relacionamos, associamos, dilatamos o pensamento.

     PIACENTINI (2012, p.8) nos presenteia com uma descrição simples a respeito desse movimento que as palavras causam no trabalho atoral:

"As palavras são frutos de pensamentos que se calcam em imagens, uma vez que, na realidade, quando falamos ou ouvimos, transformamos estas informações em ideias e imagens. Tanto Stanislavski quanto Knebel e Kusnet apontam em seus escritos que as palavras são o veículo das imagens para a articulação dos pensamentos e, por isto, devemos criar uma sequência visual relativa ao que estamos falando em cena. Como um pequeno filme que traduza o texto em questão, para que o material dito esteja carregado de visualizações e, assim, quem estiver em cena ou a assistindo possa dividir mentalmente um estado imaginário comum, para além das palavras da dramaturgia."

     A nossa pele, que nos separa do mundo lá fora, guarda o profundo mundo aqui de dentro, o mesmo o faz com a palavra, um universo mais profundo ainda, porque muitas palavras se quer conseguimos externar, compreender, mas sabemos que ela existe. A grande verdade é que, mesmo a palavra do não-sentido serve ao teatro. O teatro tudo quer e a tudo suporta!
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Referências

BONDIÁ, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf> Acesso em: maio/2016. 

PIACENTINI, Ney. Kusnet Hoje. Disponível em: <www.revistas.usp.br/pesquisator/article/download/36118/38839> Acesso em: 11/maio.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.


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