sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A ANATOMIA DA VOZ

Escuro. Mão na cabeça. Gritos incomuns. A claustrofobia tomou conta de mim...


Considerando que na última terça-feira, 16, eu havia perdido a aula de voz; e também considerando que os vídeos dessa aula postados pelos colegas no grupo do whatsapp me deixaram desejoso em vivenciar essa experiência absurda, me permiti surpreender a mim mesmo. Nada de perguntar como foi ou como seria, apesar de praticamente todos já conhecerem o aquecimento. Atenção! Já ia começar. 

     Começamos o aquecimento. Todos deitados no chão à vontade. Cada um no seu espaço. Respiração profunda. Inspirar contraindo a musculatura do diafragma e expirar expandindo essa região. Nada de mexer os ombros. Apenas sentir a música e respirar. Logo mais, deveríamos fazer alguns burbúrios, sons que não consigo distinguir, eles seguiam um mesmo ritmo, uma mesma vogal, um mesmo tom. Inicialmente era tão desarmonioso, mas isso foi se desconstruindo. Me recordo bem de um momento em que analisei e concluí: como pode estarmos externando sons em tamanha harmonia? Poderíamos abrir um longo parêntese e discorrer sobre a questão energética e sobre a questão da inconsciência para debater sobre esse fenômeno - lindo, por sinal.

     Em poucos instantes, sussurros ecoavam pela sala. Era a professora dando algum comando. Ela nunca chegava até mim e aquilo me sufocava de ansiedade. Pois bem, "encontre um corpo para sua respiração". Tenho quase certeza de que foi essa frase. Claro que não entendi bem do que se tratava aquela expressão, mas fui obediente e deixei meu corpo fluir junto a música que havia se formado naturalmente nas vozes daquele grupo de calouros. Corajosos calouros. Porque propor-se a isso é uma questão auto-permissão e auto-ceder é uma tarefa árdua, porque nosso ego não nos deixa em paz quando o assunto é tirá-lo da zona de conforto.


     Todos se levantam. É hora de montarmos o hospício, expandir a nossa potência vocal, elevá-la ao máximo de nós e o máximo de nós se trata do menor de nós, ou o mais oculto, o mais desconexo. Sob efeito da substituição a ordem era gritar, expressar uma loucura, representar uma situação trágica, evidenciar esse corpo extra-cotidiano, esse som cuja anatomia era desconcertante. O exagero. Mas no sinal da lanterna, o brando, o tranquilizado, o tom da estética simbolista e assim, aos sinais da lanterna, oscilávamos. Um grande oceano de loucura. Cada voz uma história, uma substituição de algo verídico. Ali e em tantas outras atividades é isso que o ator faz, ele se imprime.


     Em duplas, deveríamos "direcionar" a voz do outro. Como se nossos dedos tivessem agora um superpoder. Conforme os dedos se movimentavam, deveríamos dar um som para aquele movimento. No meu caso, quanto mais alto meu colega posicionava o dedo mais alto eu deveria gritar, da mesma forma o contrário. Fizemos movimentos circulares, retilíneos, instáveis e estáveis... a voz daria a anatomia para aqueles movimentos.


     De todos os sons que inserimos em nosso repertório vocal, deveríamos escolher 4 deles. Hora de construir um pequeno esboço cênico, na verdade, prioritariamente, uma partitura vocal. A fala interna seria um recurso essencial para a transição de um som para o outro. Mas confesso que a substituição foi o que deu vivacidade e inclusive emoção ao que fiz, eu me envolvi MESMO com a situação que eu criei, porque utilizei do trágico momento em que recebi a pior notícia que tive em minha vida: a morte do meu avô. Aproveitei o escuro para chorar. Não por vergonha disso, mas porque não queria explicar às pessoas a situação e me martirizar ainda mais.


    Esta foi a minha partitura:

    - Allan!
    - Hum!
    - O seu avô...
    - Hã?
    - Ele morreu!
    - Ah!!!

     Apresentamos nossas partituras em grupos de 5 pessoas. Todos representando simultaneamente. Ficou muito interessante e seria uma ótima sugestão para apresentação de cenas curtas, por exemplo.


     Há alguns anos busco resignificar essa situação trágica da minha vida e penso que o teatro é muito poderoso para resolução de muitas questões internas, porque precisamos acessar o tempo todo os conteúdos de nossa história e dar um outro sentido ou aplicar alguns recursos expressivos de outra maneira. A aula de voz foi libertadora!
     

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