Allan Maykson Longui de Araujo²
“Sinto que nos momentos em que ouço uma
emissão vocal de qualidade, sou arrebatada por uma espécie de "esquecimento"
de mim, como se fosse envolvida por uma trama invisível, e só depois é que me
dou conta de aquela ter sido uma boa interpretação vocal.”
Eudosia
Acuña Quinteiro³
Não é difícil informar em quantos papeis interpretados no decorrer
da minha curta trajetória enquanto ator me deparei com questões que estagnaram uma
parte crucial do meu trabalho: a voz.
Esse descontentamento, essa
frustração de não conseguir gestar uma boa voz cênica, que atenda ao que
construo para determinados personagens, me leva a uma reflexão produtiva sobre
meu processo de criação. Essa reflexão acontece num silêncio ruidoso, entre os
barulhos indiscerníveis de fora e também os de dentro.
É importante aceitar que a
construção vocal não é apenas uma questão de sorte, de aptidão, de dom, é
questão de trabalho, portanto, me questiono: não trabalho o suficiente na
preparação vocal? Nem na preparação desta voz performática?
Souza (2014, p. 31) propõe um
caminho de construção vocal que considero como trabalho primário do ator assim
que ele recebe um papel:
“[...] no caso da voz cênica, seu uso passa
por uma relação de pesquisa consciente na qual o ouvir, o observar, o
experimentar possibilidades vocais são aspectos importantes para se chegar a
uma qualidade vocal cênica. Isso permite que a singularidade em intercâmbio com
a coletividade produza no enunciador um jeito de falar culturalmente
construído, e que, no caso da voz cênica, pode ser intencionalmente criado
culminando na chamada voz performática.”
Não obstante,
Quinteiro (1989, p.20) sustenta a ideia de experimentação vocal buscando
fazê-lo através da natureza do personagem, esta que também está em constructo:
“No trabalho de preparação vocal pode haver abertura para
o atar, inventar existências na construção da voz do personagem, quando
(re)pensa/ (re)vive pela voz a sua natureza. Porém, nem sempre a voz do ator se
atualiza, no sentido de ocorrer renovada a cada momento, em cada novo
espetáculo. Algumas vezes é somente a reprodução de uma
padronização ou estereotipia de voz, uma voz anestesiada pela rotina ou
reificada numa couraça, e não uma voz "viva" , isto é, (re)criada
diariamente nas suas relações cênicas.
Quando a autora aponta para uma
voz “não viva”, referindo-se aos estereótipos, minha preocupação finalmente é
traduzida. É uma aflição sobre o a dualidade do óbvio da voz: a estereotipada
ou a minha própria.
Em Colapso4, tive dois
papeis: Rute e Edgard. O primeiro, na minha concepção, era uma mulher recatada,
oprimida e depressiva por não ser tão bonita e desejada quanto sua irmã. O
segundo, um bêbado inescrupuloso, machista e ganancioso.
A voz do Edgard conseguiu se estabelecer num bom distanciamento entre mim (ator) e ele (personagem). Revelar a voz de um embriagado me obrigou a pesquisar posições ideais do pescoço e da cabeça, o que tornaria a emissão vocal mais desafiadora, então, era perceptível que, essas referidas partes do corpo sempre se inclinavam para atrás para emitir o texto. Além disso, eu procurava aproximar o queixo do pescoço, como se “apertasse” a garganta a fim de que a voz saísse suja, rouca e grave. Podemos constatar isto em algumas imagens:
Cena "No bar", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia
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Cena "No bar", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia |
Cena "No bar", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia |
É inegável também que, inclinar-se, estar bambo, estar tonto, movimentos típicos de um bêbado, contribuiu para o desenrolar da voz, uma diálogo coerente entre partitura vocal e corporal.
É importante analisar que, quando eu saía dessa partitura de inclinação, eu não conseguia sustentar a voz de um bêbado, era como se meu corpo saísse do posicionamento ideal para aquele tipo específico de voz. E quando eu conseguia emitir a voz, não conseguia projetar.
Cena "No bar", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia
Suponho que tenho falhado do
tratamento vocal em diálogo com o corpo, como quando pesquisávamos
ressonâncias, e ali percebíamos os tons, volumes e potenciais de nossa voz para
cada ação do corpo. Essa pesquisa poderia enriquecer o trabalho e apontar
caminhos para um registro, uma partiturização mais eficaz e não estática,
colaborando para surgimento de nuances, movimentos, jogos vocais, etc.
Sobre a partitura Gayotto (1989,
p. 20) aponta que
A fala partiturizada revela uma
linguagem que não só explicita os recursos vocais, mas os liga à situação
cênica como um todo. A voz muitas vezes realiza-se também
como cena e com atitude objetivada pela processualidade
do personagem em sintonia
com o ator', ou seja, nestas circunstâncias ela é ação vocal. A partitura vocal é o
meio pelo qual a ação vocal poderá ser (re)visitada,
permitindo que ela e também outras ações cênicas sejam
(re)elaboradas.
Apesar de algumas limitações
neste papel, considero que o Edgar foi um personagem bem sucedido, que soube se
expressar bem vocalmente e fazer-se entender para o público. Particularmente
gostei muito desse papel porque possibilitou o contato de uma parte flexível de
mim que como ator precisou ser desenvolvida. Em Alice5, por exemplo
tenho três personagens masculinos, todos com especificidades muito distintas
entre si, é um enriquecer de repertório atoral.
Em Alice também
tenho outras duas personagens femininas, a Duquesa e Alice Dark, que, assim
como Rute, em Colapso, encontro as mesmas barreiras vocais de se construir uma
voz cênica específica para o que eu desejo.
Os papéis
femininos me encantam pela sua elaboração corporal, mas me desafiam pela
necessidade da construção vocal. Temos uma relação de encantamento e desafio
nesses papeis, que nunca me fez desistir, desanimar talvez, mas aprendi que o
melhor caminho quando não há caminho é construir um.
Nos primeiros
ensaios interpretando a Rute, entrava em cena com minha voz, sem esforço algum
de criação. Em outros laboratórios procurei alguns agudos que poderiam servir
para ela. Em um determinado ensaio, Caio, um colega de turma, me sugeriu que
colocasse uma bala na boca para surgir uma voz cênica, experimentei o recurso,
gostei, mas senti que ele fez perder um pouco da densidade que a cena
intercedia.
No insucesso da
construção vocal, tentei encontrar um ponto de fuga, de disfarce, de omissão
desse trabalho vocal: procurei pensar em figurino e na aparência da Rute, daí é
que surgiu a ideia do cabelo black power. Li em algum texto, que agora não me
recorto, que Stanislavski, certa vez, investiu em figurinos suntuosos para os
personagens a fim de esconder falhas na encenação. Eu procurei fazer o mesmo.
Cena "A Cunhada", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia
Criei mentalmente
uma Rute toda enfeitada, com vestido tão longo quanto seus brincos e lábios tão
vermelhos quanto suas bijuterias. Contudo, a direção não concordou e optou pelo
simples, descalça, em casa, sem brincos, nem nada, apenas o vestido. Meu plano
deu errado, tanto quanto a voz de Rute, que no fim era a minha própria voz.
É importante
sublinhar que, apesar de não ter obtido sucesso na construção vocal de Rute, a
interpretação não se deixou enfraquecer por essa questão. Eis o grande
aprendizado que o teatro nos dá: trabalhar com as pedras que temos e fazer a
melhor construção que podemos.
Talvez agora eu
consiga perceber que, o fato de eu não ter encontrado uma voz específica, não
quer dizer que a Rute tenha sido uma experiência “sem vida” por causa da voz.
Impregnei toda potência que podia oferecer e, também, receber da minha parceira
de cena, Mariana.
Quinteiro faz uma
citação que me conforta frente a esse cenário de frustrações, me fazendo
perceber que ainda existe algo mais que a construção de uma voz, que é a força
da voz que emprestamos a determinado personagem:
“Na ação
vocal é preciso que a voz seja fluxo das forças vitais exprimindo
sensações, ideias, emoções, imagens. Ação vocal é fluxo, escoamento e
mobilidade, processo dinâmico; pode ser no silêncio, na pausa, pois não é,
neste estado, somente ausência de som, é ação.”
Interpretar
Rute, em síntese, foi exatamente uma experiência como a que Quinteiro menciona acima. Estava presente
forças vitais, que exprimiam sensações, o suscitar de muitas imagens, o atingir
por meio das emoções, possibilitando a fluidez da ação. Os momentos de pausa, o
beber da saliva, a ausência de som, esses e outros elementos tornaram a
interpretação vocal de Rute um trabalho vivo.
Cena "A Cunhada", espetáculo "Colapso". Foto: Gabriela Julia
Gostaria de terminar esse relato
de experiência com uma citação de Winsnik (2002, p. 35) que, desde sempre,
quando penso em voz, meu pensamento traz à tona uma série de devaneios:
“O
mundo é barulho e é silêncio. A música
extrai som do ruído num sacrifício cruento, para poder articular o barulho e o
silêncio do mundo. Pois articular significa também sacrificar, romper o continuum
da natureza, que é ao mesmo tempo silêncio ruidoso (como o mar, que é, nas suas
ondulações e no rumor branco, frequência difusa de todas as frequências.”
Deixo a minha indagação: o que
preciso sacrificar para encontrar as minhas vozes?
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Notas
¹ Artigo
sobre a disciplina Voz III – 2º bimestre, do curso de Artes Cênicas da Universidade
Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia
e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela
Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em
Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura
em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de
pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto
“Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de
pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”.
Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como
docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como
professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É
membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e
da CIA “Cômodos” de teatro.
³
Autora do livro Estética da Voz que compõe a bibliografia da disciplina em
estudo.
4 Espetáculo
de cenas curtas, de direção de Lara Couto, apresentado no evento Performa-ES,
de processos cênicos do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.
5 Espetáculo
de direção de Rejane K. Arruda, contemplado no edital de circulação da
Universidade Vila Velha com o projeto “Alice: encare o mundo de frente”, sendo
encenado em 10 cidades do Espírito Santo.
Referências
QUINTEIRO,
Eusosia Acuña. Estética da voz: uma
voz para o ator. São Paulo: Summus, 1989.
SOUZA, Cristiane dos
Santos. Reflexões sobre o hibridismo vocal em performance. Urdimento - Revista
de estudos em Artes Cênicas. Santa Catarina: UDESC, 2014.
WINSNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma
outra história das músicas. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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