domingo, 18 de junho de 2017

O CORPO INEXATO¹


Allan Maykson Longui de Araujo²

“Não interpretam a si mesmos, interpretam consigo mesmos! Eis aí toda a ambiguidade do trabalho do ator.”
Jacques Lecoq³
Proponho como Inexato o corpo que não se enrijece, que se alimenta de materiais e procedimentos para criar formas, mas que também se dilui para desfazer as formas; um corpo que guarda registros, que se deixa levar pelas tessituras, que faz uso da memória corporal, que arrisca silhuetas incompreensíveis, que rasura a visualidade no cenário, que propõe a indiscernibilidade do desenho; um corpo que se abre às metamorfoses gente-gente, ator-personagem, animal-ator, personagem-animal; um corpo que se abre às identidades múltiplas, às multifaces, às multiformas; um corpo metamórfico, monstro, animalesco, mesmo que sua expressão seja um silêncio ruidoso no corpo, ao mesmo tempo em que grita por meio dele, sem se denunciar.
            O corpo inexato se circunscreve também como um corpo disponível. Para Azevedo (2008, p. 192)
O corpo disponível é aquele que permite; que não se isola do fluxo dos acontecimentos ao redor de si, que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos, não só da personagem, mas da relação com o grupo de criação. Corpo disponível é aquele capaz das respostas espontâneas e novas que somente a ausência de preconceitos e defesas maiores contra o mundo podem assegurar.”

            Contudo, penso que um corpo disponível sugere, antes de mais nada, um ator disponível, este que se propõe, principalmente, ao jogo do surpreender-se, do submeter-se, do não saber, do se arriscar, do experimentar.
Não há nada mais emocionante do que ensaiar com um ator que está disposto a pisar em território desconfortável. A insegurança mantém as linhas tensas. Se você tenta evitar sentir-se desconfortável com o que faz, não vai acontecer nada, porque o território permanece seguro e não é exposto. O desconforto gera brilho, realça a personalidade e desfaz a rotina. (BOGART, 2011, p. 118)

            Enxergo todo papel novo como sinônimo de um árduo, desgastante e construtivo trabalho. Talvez, se na minha maturidade não houvesse uma parte destinada ao “vivencie e depois avalie”, certamente o meu trabalho enquanto ator seria mais sofrido, mais desgastante e talvez, não tão prazeroso.
            É interessante tratar da inexatidão do corpo quando percebo que a minha natureza humana também não é exata. Analisando os dois, corpo e natureza, percebo que a linha tênue que conecta ambos está na inexatidão, que anseia pela proposição do que o aqui-agora, do que a vida está disposta a oferecer neste momento. Indago: a natureza inexata, que se abre ao aqui-agora, pode ser analisada sobre pontos de vista que dizem respeito à nautralidade?
            Ao discorrer sobre a máscara neutra, Lecoq (2010, p. 76) faz proposições que potencializam a construção de um corpo por meio de um improviso em situações simbólicas:
“[...]A natureza fala diretamente ao neutro. Quando atravesso a floresta, eu sou a floresta. No topo da montanha, tenho a impressão de que meus pés são o vale e de que sou, eu mesmo, a montanha. Uma pré-identificação começa a surgir. A Viagem elemental, tema maior, predispõe ao grande trabalho com as identificações. Trata-se também de uma viagem simbólica.”

            No decorrer de seu trabalho, ele propõe situações para serem vivenciadas a partir do imaginário. À medida em que nos propomos a vivenciar tais situações, aceitamos um caminho desconhecido de descobertas, não só do personagem, mas também de nós mesmos.
            O trabalho de corpo no contexto da montagem de Colapso4 aconteceu em doses homeopáticas de laboratórios, ao meu ver, especiais e inovadoras, porque a pedagogia de Lecoq evoca uma vivência da nossa natureza não só pessoal, mas ancestral também. Me vi inserido numa experiência muito intensa de abrir o corpo, e percorrer esse espaço labiríntico tão complexo que ele representa.
            Lecoq (idem, p. 102) propõe uma investigação por meio de animais, uma pesquisa da natureza do meu personagem representada por animais:
“Para evitar o fenômeno da osmose e para servir de apoio a este mais além que desejamos, servimo-nos muito de animais. Cada personagem pode ser identificado, em parte, com um ou vários animais. Se um personagem está baseado na presunção do peru, será preciso assegurar-se de que o peru esteja efetivamente presente na interpretação do ator. Não há uma identificação total entre ator e personagem, mas uma relação sempre triangular, neste caso, o peru, o ator e o personagem!”

            Percebemos uma tríade nesta construção, o animal, o ator e o personagem. No laboratório, a diretora propôs que encontrássemos um animal que dissesse respeito ao perfil psicológico de nosso personagem e assim, construíssemos um corpo.
Edgard é quem eu representei em Colapso, na cena “No bar”. Eu o enxergava como um machista, grosso, um homem bruto. Na minha pesquisa me veio a imagem de um rinoceronte, que é ríspido, forte, violento. No momento de improvisar, surgiram algumas ações que remetiam a um touro, como arrastar a perna para trás como se estivesse levantando a poeira do chão.
Aos poucos tínhamos de diminuir a visualidade do animal, importando os registros para o personagem. Em diálogo com o GP de Edgard, esse híbrido resultou num corpo com ações grandes, fortes e bem desenhadas. Inclusive, um pouco distantes da minha forma cotidiana de agir, o que é caro num processo de montagem dependendo da rubrica da direção.
O procedimento tem o potencial de nos levar a abrir mão de vícios corriqueiros. Encontrei ali uma verdade que era apenas do personagem, se quer era a minha verdade. A única verdade que me pertencia era a consciência de que nada era meu, mas sim, um Não eu-meu.5
            Enquanto Edgard suscita um corpo rígido de um ganancioso, Rute requer um corpo rígido de uma mulher infeliz, vitimizada e sarcástica:

                         Cena de “Colapso” – Rute e Dona Senhorinha (de vermelho), em “A Cunhada”. Foto: Gabriela Julia

 

  


                                            Cena de “Colapso” - Edgarg, em “No Bar”. Foto: Gabriela Julia



            O treinamento com os Gestos Psicológicos (GP’s)6 de cada personagem fortaleceu e esclareceu a ideia de corpo específica de cada um. Aponto essa diferenciação como uma conquista substancial, uma vez que tendemos, involuntariamente, a emprestar certos registros para outros personagens indevidamente.
            O GP desenha com clareza o corpo de cada papel, e não só o corpo, mas também os afetos que e outros materiais que remontam esse corpo. Durante as fotografias pude perceber diversos momentos em que o GP se manifestou corretamente para cada personagem. Diversas vezes, outra vez, involuntariamente, o corpo trazia o desenho do GP na cena fomentando a ideia construída ao longo da montagem.
            Mesmo que eu esteja satisfeito com o trabalho, e que eu também tenha começado este discurso devaneando sobre o Corpo Inexato, que se abre a uma busca corpórea, devo sublinhar algumas dificuldades:
            A primeira e mais evidente foi a de fazer o movimento sexual no chão. No espetáculo algumas pessoas não tinham pudor, mas eu tinha! Entrei no palco ainda inseguro com essa ação, mas lá mesmo isso desapareceu. Apesar de a direção ter afirmado em certo ensaio que o movimento saiu bem realizado, eu sempre achei que era a parte em que eu menos me entregava, mas não, eu estava me enganando. Era um campo desconhecido que eu precisava pisar e estava disposto a isso, apesar do desconserto tão expressivo em fazê-lo.
            Quanto mais eu fazia aquele gesto, mais eu estava convencido de que era meu personagem, não eu, de que veriam o personagem e não eu. Progressivamente, num exercício de autocrítica, eu aceitava aquele gesto e desbloqueava a energia que se prendia.
            Azevedo (2008, p. 184) faz alusão a esse trabalho interno:
“[...] É preciso que o ator saiba perceber a conexão imediata entre imaginação e sensações corporais correspondentes; [...] e trabalhe com os cinco sentidos a fim de desbloquear a energia dramática necessária à produção gestual espontânea.”
            O papel do Edgard me tirou de muitas maneiras da minha zona de conforto, do simples “coçar do saco”, até o desejo de “trepar” com a granfina. Óbvio que minha reação é sintomática para tantas questões que ainda me são tabus e que preciso aprender a enfrentar, é uma conquista pessoal.
            No papel da Rute me senti confortável, incomodado com o fator vocal, já explanado no artigo de Voz. Um dos desafios que encontrei quase chegando perto da estreia foi o de fazer a Mariana, que representava a Dona Senhorinha, entender que ela podia colocar mais força ao “me pegar”.
            Pensar na minha relação com Mari nessa cena é precioso. Porque ela tinha total cuidado em não me machucar, se preocupava, enquanto eu, antes de entrarmos em cena, dizia: me pega! Desce o cacete! Me arrebenta! E progressivamente ela foi aprendendo a arrancar fios do meu cabelo. Gratidão por atuar com ela.
            Por fim, eu gostaria de, finalmente, concordar com Lecoq (2010, p. 91) quando ele diz que
Pouco a pouco, os próprios alunos chegam a ter um olhar sutil sobre as nuances dos gestos. [...] A formação do olhar é tão importante quanto a formação da criatividade. De nada serve oferecer um bom vinho àqueles que não podem apreciá-lo! É o que chamo de cultura: poder realmente apreciar as coisas.
            Analisando as fotos e dialogando com o processo realmente pude constatar um olhar que apura, que analisa, que identifica, que relaciona, que critica, que percebe e que, independente da qualidade do espetáculo, aprecia, para que, com maturidade consiga se posicionar e julgar com coerência e fundamento.
            Concluo esta discursão provocando a mim mesmo a embarcar nessa viagem que me surgiu ao começar escrever esse artigo: o corpo inexato.










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Notas
¹ Artigo sobre a disciplina CORPO III – 2º bimestre, do curso de Artes Cênicas da Univerdiade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e da CIA “Cômodos” de teatro.
³ Escritor, ator, mimo e professor de atuação Francês, escritor do livro “O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral, traduzido por Marcelo Gomes, compondo o arsenal bibliográfico da disciplina de Corpo do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.
4 Espetáculo de cenas curtas, de direção de Lara Couto, apresentado no evento Performa-ES, de processos cênicos do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.

5 Projeto de pesquisa de Iniciação Científica de minha autoria contemplado pelo PIBIC – UVV que  pretende-se desdobrar o conceito de "não-eu meu", de Gaston Bachelard, articulando-o ao trabalho do ator, sob a hipótese de que esta instância operacionaliza uma relação dialética entre "ator" e "personagem", trabalhando a “alteridade" entre eles, articulando a prática e o devir cênico, e provocando a "plasticidade dos afetos" com o objetivo de composição de uma figura viva. O desenvolvimento e aplicação do conceito de "não-eu meu" no campo das Artes Cênicas representa uma perspectiva de resposta à crise da personagem instalada no Século XX, contribuindo para a Pedagogia do Ator.     

6 O GP é um termo desenvolvido por Chekhov para tratar de uma ação global que representa o personagem, o diferencia de outros, o identifica para o próprio ator, de maneira simples, clara, forte e vívida.

Referências
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011.
CHEKHOV, Michael. Para o Ator. Tradução de Álvaro Cabral. Capítulo 5 – Gesto Psicológico. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LECOQ, Jacques. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. Traduzido por Marcelo Gomes. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições SESC SP, 2010.




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