Allan Maykson Longui de Araújo²
Tão inexato quanto o corpo e a natureza humana é o personagem.
Que, independente de sua existência na dramaturgia, torna-se um embrião cada
vez em que seu berço passa nas mãos de um ator. Um ator disponível fará uma boa
gestação, vai pari um bom filho, e depois da apresentação esse filho morrerá no
blecaute, e deixará como herança resíduos, impregnados na tessitura do corpo.
Será repertório.
Sinto essa
progressão no meu trabalho enquanto ator. Construo, procuro enlaces, gero
afetos, dialogo com minhas dores e os meus contentamentos; também procuro
impregnar nos meus papeis o que vejo de pior em mim, então vejo como se traduz.
Construir um personagem na minha concepção de trabalho é entregar-se à
sofreguidão latente de imergir e emergir, de introverter e extroverter³. Um
lugar de demarcar territórios e depois pular as fronteiras até alcançar o âmago
do personagem, que está em mim.
Sinto que o
trabalho atoral me faz ser o mais virtuoso e o mais miserável. Virtuoso por dar
vida, emprestar a minha história e todos os meus esforços pessoais; miserável
porque me torno um assassino cuja morte do papel acontece no palco, na frente
do público, sangrento. É cruel, porque preciso gerar e matar quantas vezes ele
for representado. Deixo lá naqueles chãos normalmente rústicos, suor do meu
esforço, da minha energia e sangue, como símbolo de que ele deu tudo que pôde,
agora pode descansar em paz.
PAPEL
Allan
Maykson
Interprete-me
Interpele-me
Intrateatra-me.
Enlaça-me
Descobre-me
Mas cubra-me
Então rasgue-me.
Dilacere-me
Mas reconstrua-me
Desmonta-me
Reerga-me
Deixe-me ali
No solo
No chão
No porão
No poço
No fosso.
Salva-me
Revelando-te-me.
20 de
junho de 2017
Ser ator é o
momento em que perco toda lógica da vida e ilógico obedeço aos estímulos que
percorrem minhas veias. Não é a toa que tenho uma postura, um comportamento em
sala de aula, naquela organização tradicional, e outro no laboratório. No
laboratório eu me sinto pleno, me sinto verdadeiramente um ator, um
pesquisador, um criador, um articulador, um inventor. Ali questiono com emoção
e ciência, devaneio com o coração e com a ciência, uma ciência que me permite
me perder, em vias que às vezes se quer a ciência conseguiu penetrar.
Chekhov (1996), em
sua pedagogia, estimula o trabalho da intuição, da imaginação, do
questionamento, das elaboração por imagens, dessa imersão dentro de si para
encontrarmos características de nossa personagem.
Se fora, na
realidade, na vida externa encontramos motivos que nos prendam, que imponha
atitudes, dentro, em nossa psique, em nossa vida interior temos toda liberdade
para vivenciar quantas experiências desejarmos.
“Nossas
imagens estão livres de quaisquer
inibições, porque são produtos diretos e espontâneos de nossa
individualidade criativa. Tudo o que dificulta o trabalho de um ator provém de
um corpo subdesenvolvido ou de peculiaridades psicológicas pessoais, como
timidez, falta de confiança e medo de causar uma falsa impressão (sobretudo
durante os primeiros ensaios).” (CHEKHOV, 1996, p. 164-165)
Eu tenho uma
habilidade para introspecção que é inexplicável. Transito entre tantos mundos e
ideias sem sair do lugar, e consigo sentir intensamente cada território que
piso nessa deslocação diária em busca de afetos, estímulos, imagens, e tantos outros
conteúdos que despertem uma paixão visceral pelos meus papeis. Enxergo minhas
construções como um “nunca contentar-se de contente”³, como escreveu Luís de
Camões, sobre o amor.
Chekhov (idem, p.
166) ressalta sobre essa paixão à luz de Stanislavski:
“[...]
Stanislavski estava convencido de que, se o diretor ou o ator, por alguma
razão, não passavam por tal período de “paixão”, poderia encontrar mais tarde
inúmeras dificuldades em seu trabalho numa peça ou num papel. [...] Portanto,
sua abordagem do papel por meio de atmosferas dar-lhe-á uma grande oportunidade
de descobrir na personagem muitas características interessantes e importantes,
e nuanças sutis que, de outro modo, poderiam escapar facilmente a sua atenção.
O período de
paixão se caracteriza em meu trabalho como um aprofundamento muito detalhado e
trabalhoso na alma da minha personagem. É como se cada papel fosse apenas um
papel, e nele eu estivesse incumbido de fazer minhas rasuras. Digo rasuras porque
é um trabalho deslinear, desarmônico, e extremamente ruidoso.
A paixão sobre um
papel não se limita. Interpretar é encarar o desafio de completar o que está
interminado. É um exercício de preenchimento sem fim. Como quando se cava um
buraco, quanto mais se tira, mais se tem. Mas, quando parar de cavar? Não
paramos, mas organizamos nossos instrumentos e nosso trabalho.
A pedagogia de
Chekhov ganhou sentido no meu trabalho justamente porque me presenteou com
ferramentas que orientam minhas emoções em relação às construções. “Cada
personagem tem suas qualidades penetráveis e definíveis.” Numa avalanche de emoções procuro a ponta do iceberg, o que
é geral, o que é definível. São nortes, e cuidam da saúde de nossa psique.
“Tendo
encontrado a qualidade geral para a personagem como um todo, e tendo-a
vivenciado como uma sensação de
sentimento desejável, procure interpretar seu papel sob a influência dela.
Interprete-o primeiro em sua imaginação, se desejar, e depois comece
ensaiando-o concretamente (em casa ou no palco).” (idem, 167)
Uma outra maneira
que não nos deixa divagar sem rumo nessa vida interior que criamos é o Gesto
Psicológico, também um conceito chekhoviano. O GP é um gesto global, nele deve
estar imbricado o desejo, a vontade da personagem. Nos dá uma “direção
definida, desperta sentimentos e oferece-nos uma versão condensada da
personagem”. Ele precisa ser forte, simples e bem desenhado. (idem, 97)
A seguir irei
mostrar algumas imagens das minhas personagens no espetáculo Colapso4,
montado a partir de laboratórios realizados baseados em Chekhov, dentre outros
autores e teóricos. Meu interesse é mostrar a presença dos GP’s em diversos
momentos das cenas, muitas vezes marcados também pela expressão facial. As
fotos de Gabriela Julia, também aluna do curso de Artes Cênicas da Universidade
Vila Velha, foram muito felizes justamente porque nos permite uma análise
dessas construções.
Perceberemos em
Rute uma construção facial de uma moça infeliz e desgostosa da vida. Sempre
puxando os lábios para baixo, caracterizando um choro, também certo rancor por
ser como é. Em Edgard, o bêbado, o GP foi basicamente um movimento com os
braços e a mão, então em diversos momentos do espetáculo é possível perceber
esse recurso sendo desenhado na interpretação:
Imagens: Gabriela Julia. Espetáculo "Colápso", direção de Lara Couto.
É muito evidente a visualidade do
GP como uma tessitura aparente, que se evocada diversas vezes em uma única
cena. O cérebro concebeu tal construção, tal gesto como um recurso a ser
explorado e potencializado em cena, uma vez que foi gestado como uma síntese
corporal na qual está imbricada desejos, vontades, afetos e uma série de
conteúdos que sustentam e dão vida ao GP. Essa vida faz com que o desenho não
perca sua intensidade na interpretação, não deixa o espaço vazio, também afeta
energeticamente o espectador e os parceiros de cena.
Para potencializar
o trabalho, me utilizei de recursos aprendidos no outro semestre com a direção
de Rejane K. Arruda, que prezou pelos monólogos e pela memorização pela
escrita. Muitos desejos e características das minhas personagens foram
encontrados nesse trabalho de escrita.
Encontrar o GP
para os papeis que eu ia desempenhar foi um processo no qual o hibridismo de
recursos permitiu um aprofundamento substancial para minha construção. Vejamos
os monólogos:
“A CUNHADA
Eu sou feia. Assim como a “Anne
com E” se sente. Ela ainda é só uma garotinha, ruiva, sarnenta e magrela,
porém, inteligente, mas nada disso conta. “Se as rosas não fossem bonitas,
ninguém pararia para cheirá-las”. Eu me sinto assim, indesejada,
infeliz, amargurada, humilhada pela Dona Senhorinha, que me agride, fala
coisas horríveis para mim. Não me sinto amada, tenho vontade de fugir, de apanhar
até morrer, de desaparecer. Outro dia, Dona Senhorinha me pegou pelo
braço...” 5
Preciso
de um espaço para discorrer sobre esse monólogo tão curto, mas tão rido de
informações. Vamos no orientar a partir do que está sublinhado respectivamente.
“Anne com E”, é uma série da Net Flix, eu não tenho assinatura, mas outro dia,
na casa dos meus tios, eles me disseram que era a minha cara e que eu precisava
assistir, eu já estava montando Colapso. Foi um choque e uma riquíssima
referência para Rute. A Anne quem disse a frase destacada, e pra mim foi muito
marcante, porque na cena ninguém quis a Rute, nem Jonas, nem a muda, tampouco
era suportada pela Dona Senhorinha. Faço questão de mencionar alguns adjetivos,
que me ajudaram a definir características da personagem. E eu não poderia
deixar de inserir a Dona Senhorinha, porque eu precisava descobrir o que ela me
causava, seguindo uma orientação que li em Chekhov (idem, p. 169):
“Releia
todo o seu papel e tente definir que sentimentos gerais (ou sensações de
sentimentos) as outras personagens despertam na sua. [...] E que desejos engendram no íntimo de sua
personagem. Incutem-lhe o desejo de dominar, submeter-se, vingar-se, atrair,
seduzir, fazer amigos, ofender, agradar, assustar, acariciar, protestar – qual
deles?
Dona
Senhorinha me despertava um desejo de vingança, mas eu sabia que ela era mais
forte, que eu era submissa, preferiria “apanhar até morrer”. A última frase que
destaquei é um impulso, o que eu preciso para entrar em cena. Como Rute sabia
que ia apanhar, na coxia eu já dizia para Mariana, atriz que interpretou a
personagem: desça o cacete. Era o meu superobjetivo, de Stanislavski. Esse
termo é designado à máxima do que minha personagem deseja. Rute desejava
apanhar. Chekhov (idem, p. 172) ainda nos aponta um cuidado que considero
precioso na hora de definir o superobjetivo:
“O
intuito de denominar o objetivo, de fixa-lo em palavras, Stanislavski sugeriu a
seguinte fórmula: “Eu quero ou desejo fazer
isto e aquilo...”[...]. Nunca use sentimentos e emoções enquanto estiver
definindo seus objetivos – como quero amar
ou desejo sentir-me triste -, porque
sentimentos ou emoções não podem ser feitos.
A funcionalidade do monólogo também
se estendeu ao processo de construção do Edgard, personagem que considerei
desafiador por ser promíscuo demais, uma característica que se distancia de
meus valores pessoais. Mas o desafio foi aceito e tratado com minuciosidade.
Conheçamos o monólogo de Edgard:
“NO
BAR
Meu
nome é Edgard, sou o malando da cidade, um pé rapado, mas galã de novela.
Bonito, cheiroso e de muitas mulheres. Não posso ver uma buceta que já me dá
água na boca. Meu hobbie? Beber! Meu trabalho? Comer essas granfinas da
cidade. Eu gosto de bebida. Vou morrer disso. Mas “eu não sou defunto de cova
rasa não!”.” (Diário de bordo de Allan Maykson)
As
análises não se distanciam das que fiz no monólogo de Rute. Procuro inserir nos
monólogos características do personagem. Acredito que escrevendo e relendo meu
corpo consegue traduzir isso em cena. A escrita é uma outra via de impregnação.
Exploro bastante o meu caderno de
ator. Nele procuro registrar as partituras físicas, algumas falar internas,
algumas maneiras de falar ou até mesmo maneiras de rir, como fiz em Rute para
construção de uma risada que não fosse a minha. Gosto de utilizar muitas cores também,
colocando significado para cada uma delas. A escrita é uma ferramenta de
criação em potencial. Eu me empolgo com meu caderno na não, gosto de fazer
rasuras. Em outros trabalhos eu produzia desenhos das falas, imagens que
surgiam. Tento registrar o que me sobressai nos olhos interiores.
Memorização pela escrita, de Rute. Diário de bordo de Allan
Maykson.
É
interessante admirar o meu trabalho. Não é uma prática muito comum para mim,
mas discorrendo sobre todo esse processo de interpretação e apresentando tantos
meios e recursos que me utilizei para a montagem de Colapso, eu preciso
concluir com veemência que desenvolvo um trabalho de qualidade ainda que eu
sempre exija mais. Mas percebo, sobretudo, que todas as coisas, ferramentas,
caminhos, etc, não são por mim, são pela obra. Essa dedicação alcança outras
artes que realizo, como a música. Eu não sei cantar algo que não me faça chorar
ou pensar muito. No meu trabalho de ator é assim: preciso primeiro me prender
para depois me libertar. Preciso gestar, para depois matar. É. Eu sou um
assassino!
_____________________________________
Notas
¹ Artigo
sobre a disciplina PRÁTICA EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL II, do curso de Artes
Cênicas da Universidade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms.
Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia
e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela
Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em
Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente,
Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do
grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto
“Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de
pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”.
Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como
docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como
professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É
membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e da
CIA “Cômodos” de teatro.
³ Disponível <
https://www.pensador.com/amor_e_fogo_que_arde_sem_se_ver/>
acessado em 20 de junho de 2017.
4 Espetáculo
de cenas curtas, de direção de Lara Couto, apresentado no evento Performa-ES,
de processos cênicos do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.
5 Meu caderno de ator ou diário de bordo pessoal, onde desenvolvo
monólogos e memorizações pela escrita.
Referências Bibliográficas
CHEKHOV,
Michael. Para o Ator. Tradução de
Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário