domingo, 25 de junho de 2017

INTERPRETAÇÃO: DO CÁRCERE À MORTE¹

Allan Maykson Longui de Araújo²

Tão inexato quanto o corpo e a natureza humana é o personagem. Que, independente de sua existência na dramaturgia, torna-se um embrião cada vez em que seu berço passa nas mãos de um ator. Um ator disponível fará uma boa gestação, vai pari um bom filho, e depois da apresentação esse filho morrerá no blecaute, e deixará como herança resíduos, impregnados na tessitura do corpo. Será repertório.
            Sinto essa progressão no meu trabalho enquanto ator. Construo, procuro enlaces, gero afetos, dialogo com minhas dores e os meus contentamentos; também procuro impregnar nos meus papeis o que vejo de pior em mim, então vejo como se traduz. Construir um personagem na minha concepção de trabalho é entregar-se à sofreguidão latente de imergir e emergir, de introverter e extroverter³. Um lugar de demarcar territórios e depois pular as fronteiras até alcançar o âmago do personagem, que está em mim.
            Sinto que o trabalho atoral me faz ser o mais virtuoso e o mais miserável. Virtuoso por dar vida, emprestar a minha história e todos os meus esforços pessoais; miserável porque me torno um assassino cuja morte do papel acontece no palco, na frente do público, sangrento. É cruel, porque preciso gerar e matar quantas vezes ele for representado. Deixo lá naqueles chãos normalmente rústicos, suor do meu esforço, da minha energia e sangue, como símbolo de que ele deu tudo que pôde, agora pode descansar em paz.

PAPEL
Allan Maykson

Interprete-me
Interpele-me
Intrateatra-me.
Enlaça-me
Descobre-me
Mas cubra-me
Então rasgue-me.
Dilacere-me
Mas reconstrua-me
Desmonta-me
Reerga-me
Deixe-me ali
No solo
No chão
No porão
No poço
No fosso.
Salva-me
Revelando-te-me.

20 de junho de 2017

            Ser ator é o momento em que perco toda lógica da vida e ilógico obedeço aos estímulos que percorrem minhas veias. Não é a toa que tenho uma postura, um comportamento em sala de aula, naquela organização tradicional, e outro no laboratório. No laboratório eu me sinto pleno, me sinto verdadeiramente um ator, um pesquisador, um criador, um articulador, um inventor. Ali questiono com emoção e ciência, devaneio com o coração e com a ciência, uma ciência que me permite me perder, em vias que às vezes se quer a ciência conseguiu penetrar.
            Chekhov (1996), em sua pedagogia, estimula o trabalho da intuição, da imaginação, do questionamento, das elaboração por imagens, dessa imersão dentro de si para encontrarmos características de nossa personagem.
            Se fora, na realidade, na vida externa encontramos motivos que nos prendam, que imponha atitudes, dentro, em nossa psique, em nossa vida interior temos toda liberdade para vivenciar quantas experiências desejarmos.
“Nossas imagens estão livres de quaisquer inibições, porque são produtos diretos e espontâneos de nossa individualidade criativa. Tudo o que dificulta o trabalho de um ator provém de um corpo subdesenvolvido ou de peculiaridades psicológicas pessoais, como timidez, falta de confiança e medo de causar uma falsa impressão (sobretudo durante os primeiros ensaios).” (CHEKHOV, 1996, p. 164-165)

            Eu tenho uma habilidade para introspecção que é inexplicável. Transito entre tantos mundos e ideias sem sair do lugar, e consigo sentir intensamente cada território que piso nessa deslocação diária em busca de afetos, estímulos, imagens, e tantos outros conteúdos que despertem uma paixão visceral pelos meus papeis. Enxergo minhas construções como um “nunca contentar-se de contente”³, como escreveu Luís de Camões, sobre o amor.
            Chekhov (idem, p. 166) ressalta sobre essa paixão à luz de Stanislavski:
“[...] Stanislavski estava convencido de que, se o diretor ou o ator, por alguma razão, não passavam por tal período de “paixão”, poderia encontrar mais tarde inúmeras dificuldades em seu trabalho numa peça ou num papel. [...] Portanto, sua abordagem do papel por meio de atmosferas dar-lhe-á uma grande oportunidade de descobrir na personagem muitas características interessantes e importantes, e nuanças sutis que, de outro modo, poderiam escapar facilmente a sua atenção.

            O período de paixão se caracteriza em meu trabalho como um aprofundamento muito detalhado e trabalhoso na alma da minha personagem. É como se cada papel fosse apenas um papel, e nele eu estivesse incumbido de fazer minhas rasuras. Digo rasuras porque é um trabalho deslinear, desarmônico, e extremamente ruidoso.
            A paixão sobre um papel não se limita. Interpretar é encarar o desafio de completar o que está interminado. É um exercício de preenchimento sem fim. Como quando se cava um buraco, quanto mais se tira, mais se tem. Mas, quando parar de cavar? Não paramos, mas organizamos nossos instrumentos e nosso trabalho.
            A pedagogia de Chekhov ganhou sentido no meu trabalho justamente porque me presenteou com ferramentas que orientam minhas emoções em relação às construções. “Cada personagem tem suas qualidades penetráveis e definíveis.” Numa avalanche de emoções procuro a ponta do iceberg, o que é geral, o que é definível. São nortes, e cuidam da saúde de nossa psique.
“Tendo encontrado a qualidade geral para a personagem como um todo, e tendo-a vivenciado como uma sensação de sentimento desejável, procure interpretar seu papel sob a influência dela. Interprete-o primeiro em sua imaginação, se desejar, e depois comece ensaiando-o concretamente (em casa ou no palco).” (idem, 167)
            Uma outra maneira que não nos deixa divagar sem rumo nessa vida interior que criamos é o Gesto Psicológico, também um conceito chekhoviano. O GP é um gesto global, nele deve estar imbricado o desejo, a vontade da personagem. Nos dá uma “direção definida, desperta sentimentos e oferece-nos uma versão condensada da personagem”. Ele precisa ser forte, simples e bem desenhado. (idem, 97)
            A seguir irei mostrar algumas imagens das minhas personagens no espetáculo Colapso4, montado a partir de laboratórios realizados baseados em Chekhov, dentre outros autores e teóricos. Meu interesse é mostrar a presença dos GP’s em diversos momentos das cenas, muitas vezes marcados também pela expressão facial. As fotos de Gabriela Julia, também aluna do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, foram muito felizes justamente porque nos permite uma análise dessas construções.           
            Perceberemos em Rute uma construção facial de uma moça infeliz e desgostosa da vida. Sempre puxando os lábios para baixo, caracterizando um choro, também certo rancor por ser como é. Em Edgard, o bêbado, o GP foi basicamente um movimento com os braços e a mão, então em diversos momentos do espetáculo é possível perceber esse recurso sendo desenhado na interpretação:





Imagens: Gabriela Julia. Espetáculo "Colápso", direção de Lara Couto.

É muito evidente a visualidade do GP como uma tessitura aparente, que se evocada diversas vezes em uma única cena. O cérebro concebeu tal construção, tal gesto como um recurso a ser explorado e potencializado em cena, uma vez que foi gestado como uma síntese corporal na qual está imbricada desejos, vontades, afetos e uma série de conteúdos que sustentam e dão vida ao GP. Essa vida faz com que o desenho não perca sua intensidade na interpretação, não deixa o espaço vazio, também afeta energeticamente o espectador e os parceiros de cena.
            Para potencializar o trabalho, me utilizei de recursos aprendidos no outro semestre com a direção de Rejane K. Arruda, que prezou pelos monólogos e pela memorização pela escrita. Muitos desejos e características das minhas personagens foram encontrados nesse trabalho de escrita.
            Encontrar o GP para os papeis que eu ia desempenhar foi um processo no qual o hibridismo de recursos permitiu um aprofundamento substancial para minha construção. Vejamos os monólogos:
“A CUNHADA
Eu sou feia. Assim como a “Anne com E” se sente. Ela ainda é só uma garotinha, ruiva, sarnenta e magrela, porém, inteligente, mas nada disso conta. “Se as rosas não fossem bonitas, ninguém pararia para cheirá-las”. Eu me sinto assim, indesejada, infeliz, amargurada, humilhada pela Dona Senhorinha, que me agride, fala coisas horríveis para mim. Não me sinto amada, tenho vontade de fugir, de apanhar até morrer, de desaparecer. Outro dia, Dona Senhorinha me pegou pelo braço...” 5

            Preciso de um espaço para discorrer sobre esse monólogo tão curto, mas tão rido de informações. Vamos no orientar a partir do que está sublinhado respectivamente. “Anne com E”, é uma série da Net Flix, eu não tenho assinatura, mas outro dia, na casa dos meus tios, eles me disseram que era a minha cara e que eu precisava assistir, eu já estava montando Colapso. Foi um choque e uma riquíssima referência para Rute. A Anne quem disse a frase destacada, e pra mim foi muito marcante, porque na cena ninguém quis a Rute, nem Jonas, nem a muda, tampouco era suportada pela Dona Senhorinha. Faço questão de mencionar alguns adjetivos, que me ajudaram a definir características da personagem. E eu não poderia deixar de inserir a Dona Senhorinha, porque eu precisava descobrir o que ela me causava, seguindo uma orientação que li em Chekhov (idem, p. 169):
“Releia todo o seu papel e tente definir que sentimentos gerais (ou sensações de sentimentos) as outras personagens despertam na sua. [...] E que desejos engendram no íntimo de sua personagem. Incutem-lhe o desejo de dominar, submeter-se, vingar-se, atrair, seduzir, fazer amigos, ofender, agradar, assustar, acariciar, protestar – qual deles?
      
Dona Senhorinha me despertava um desejo de vingança, mas eu sabia que ela era mais forte, que eu era submissa, preferiria “apanhar até morrer”. A última frase que destaquei é um impulso, o que eu preciso para entrar em cena. Como Rute sabia que ia apanhar, na coxia eu já dizia para Mariana, atriz que interpretou a personagem: desça o cacete. Era o meu superobjetivo, de Stanislavski. Esse termo é designado à máxima do que minha personagem deseja. Rute desejava apanhar. Chekhov (idem, p. 172) ainda nos aponta um cuidado que considero precioso na hora de definir o superobjetivo:

“O intuito de denominar o objetivo, de fixa-lo em palavras, Stanislavski sugeriu a seguinte fórmula: “Eu quero ou desejo fazer isto e aquilo...”[...]. Nunca use sentimentos e emoções enquanto estiver definindo seus objetivos – como quero amar ou desejo sentir-me triste -, porque sentimentos ou emoções não podem ser feitos.  

            A funcionalidade do monólogo também se estendeu ao processo de construção do Edgard, personagem que considerei desafiador por ser promíscuo demais, uma característica que se distancia de meus valores pessoais. Mas o desafio foi aceito e tratado com minuciosidade. Conheçamos o monólogo de Edgard:

“NO BAR
Meu nome é Edgard, sou o malando da cidade, um pé rapado, mas galã de novela. Bonito, cheiroso e de muitas mulheres. Não posso ver uma buceta que já me dá água na boca. Meu hobbie? Beber!  Meu trabalho? Comer essas granfinas da cidade. Eu gosto de bebida. Vou morrer disso. Mas “eu não sou defunto de cova rasa não!”.” (Diário de bordo de Allan Maykson)

            As análises não se distanciam das que fiz no monólogo de Rute. Procuro inserir nos monólogos características do personagem. Acredito que escrevendo e relendo meu corpo consegue traduzir isso em cena. A escrita é uma outra via de impregnação.
            Exploro bastante o meu caderno de ator. Nele procuro registrar as partituras físicas, algumas falar internas, algumas maneiras de falar ou até mesmo maneiras de rir, como fiz em Rute para construção de uma risada que não fosse a minha. Gosto de utilizar muitas cores também, colocando significado para cada uma delas. A escrita é uma ferramenta de criação em potencial. Eu me empolgo com meu caderno na não, gosto de fazer rasuras. Em outros trabalhos eu produzia desenhos das falas, imagens que surgiam. Tento registrar o que me sobressai nos olhos interiores. 

Memorização pela escrita, de Rute. Diário de bordo de Allan Maykson.

          É interessante admirar o meu trabalho. Não é uma prática muito comum para mim, mas discorrendo sobre todo esse processo de interpretação e apresentando tantos meios e recursos que me utilizei para a montagem de Colapso, eu preciso concluir com veemência que desenvolvo um trabalho de qualidade ainda que eu sempre exija mais. Mas percebo, sobretudo, que todas as coisas, ferramentas, caminhos, etc, não são por mim, são pela obra. Essa dedicação alcança outras artes que realizo, como a música. Eu não sei cantar algo que não me faça chorar ou pensar muito. No meu trabalho de ator é assim: preciso primeiro me prender para depois me libertar. Preciso gestar, para depois matar. É. Eu sou um assassino!

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Notas
¹ Artigo sobre a disciplina PRÁTICA EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL II, do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e da CIA “Cômodos” de teatro.
³ Disponível < https://www.pensador.com/amor_e_fogo_que_arde_sem_se_ver/> acessado em 20 de junho de 2017.
4 Espetáculo de cenas curtas, de direção de Lara Couto, apresentado no evento Performa-ES, de processos cênicos do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.

5 Meu caderno de ator ou diário de bordo pessoal, onde desenvolvo monólogos e memorizações pela escrita.

Referências Bibliográficas
CHEKHOV, Michael. Para o Ator. Tradução de Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

  

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