por Allan Maykson¹
A CIA de Lata, composta por seis integrantes, todos estudantes do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, instituição na qual a CIA está vinculada, surpreendeu com seu espetáculo performativo apresentado em 27 de novembro de 2016, dispensando o palco do Teatro Municipal de Vila Velha e evocando um tema delicado e tratado, normalmente, com humor no cenário teatral: a população em situação de rua.
Cena do Espetáculo "Filhos do Passado". Foto: Gabriela Julia
Um teatro tomado pela fumaça, potencializando a iluminação azul que oferecia ao ambiente uma sensação não apenas noturna, mas também, soturna; quase não se via os rostos, apenas corpos andrajosos, atores já em cena, isolados, traçados os semblantes com maquiagem de sofrimento, ódio e loucura.
Cenas do Espetáculo "Filhos do Passado". Foto: Gabriela Julia
Bastava adentrar às cortinas para sentir a tensão do ambiente, a sensação obscura de que ali não era um espaço teatral, mas sim, um galpão abandonado onde moravam os andarilhos, e nós, não éramos espectadores, éramos intrusos, invasores daquela margem social, daquela fatia da sociedade, invisível e negligenciada.
Cena do Espetáculo "Filhos do Passado". Foto: Gabriela Julia
Ritmo, divisão de foco, cenas simultâneas, repetição de ações vocais, personagens loucos, histéricos, viciados, insanos, perturbados, traumatizados, agressões físicas e morais, foram características que despertaram o medo e a aflição de quem assistia. Víamos, na encenação, frutos do passado, de experiências delicadas de vida, víamos consequências do abandono, efeitos da descrença em relação à prole, resultados de muitos “nãos” que são proferidos todos os dias por e para milhares de indivíduos.
Cenas do Espetáculo "Filhos do Passado". Foto: Gabriela Julia
O espetáculo que trazia em sua poética elementos do Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud, envolveu os presentes em todos os sentidos sensoriais. Os atores solicitavam os espectadores com perguntas, gritos e outras ações, nestes momentos era possível sentir um cheiro forte que ardia as narinas, um cheiro que denunciava a entrega dos atores à obra, quando se propuseram a elaborar esse estímulo sensorial, e também denunciava a realidade do teatro, nua, crua e pulsante, trazendo à memória o espetáculo de Romeo Castelucci, "Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus", no qual o cheiro das fezes do senhor (personagem) que sofria incontinências invadiu o teatro.
Há que se destacar o paladar, sim, porque nós enquanto espectadores, provávamos da nossa própria saliva ao estar cara-a-cara com as nossas atitudes de negligência em relação aos moradores de rua, o desrespeito e a invisibilidade por nós doada.
Há que se destacar o paladar, sim, porque nós enquanto espectadores, provávamos da nossa própria saliva ao estar cara-a-cara com as nossas atitudes de negligência em relação aos moradores de rua, o desrespeito e a invisibilidade por nós doada.
FILHOS DO PASSADO apresentado justo naquele teatro, localizando na praça do Centro de Vila Velha (ES), era quase uma ironia da vida, uma experiência dual: dentro do teatro, a peça sobre moradores de rua, e fora, a realidade destes que sobrevivem nos espaços públicos da praça.
Aos que apenas assistiram, devo presumir que a consciência crítica e sensível não saiu do lugar, já aos que experimentaram, certamente deixaram o teatro com o olhar excitado capaz de ver e enxergar, não só as pessoas marginalizadas, mas o mais invisível dos seres, a si mesmo.
Assistir FILHOS DO PASSADO foi uma experiência para sair da qualidade de espectador e ocupar o papel de responsável. Por mais espetáculos que nos tiram do prumo!
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¹Allan Maykson é graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice onde desenvolve trabalhos de música, poesia e contação de histórias.
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