(apresentação do Intrateatro na 6a Abertura de Processos Cênicos)
Meu amigo Leonardo Machado, de Linhares, é, antes de tudo, um ser humano que tem o meu respeito e total admiração. É artista também e tem uma família linda, com filhos e esposa maravilhosos só por sentir. Sim, eu nunca fui tão próximo, mas minha sensitividade sempre me permitiu sentir a essência das pessoas.
Léo me abordou ontem, 11, e me surpreendeu. "Você mudou, algo aconteceu". Assim ele disse. Me assustei até. Ele queria que eu compartilhasse sobre “A hora da quebra da mudança”. Isso me inquietou, eu até disse: “Eu sempre quis escrever sobre isso, mas me perguntava “pra quê?”. Acho que encontrei a resposta”. A resposta é: a minha experiência pode contribuir para a vida das pessoas!
Estou escrevendo isto sem medo, sem vergonha, e sendo honesto até nos meu erros de português. (risos)
Gratidão ao Léo por me impulsionar!
CAPÍTULO 1: A DESCOBERTA
Para aprender a amar-se é preciso, primeiro, aprender a desamar. O amor próprio é uma descoberta cheia de degraus, de machucados, de fraturas expostas, de calos, todos esses pesos que às vezes, se quer temos consciência.
Aprender a se amar é um ato de não gostar de quem estamos sendo em determinado momento da vida. Enxergar que fomos cópias e que não somos originais é assustador, mas quando entendemos que precisamos nos despir é a hora em que encontramos uma coragem cósmica, a super-coragem de se ver. É como cair na toca do coelho e assumirmos nosso aspecto “Alice”, nosso lado “sombra”, nossa fatia “monstro”.
Eu sempre fui um garoto exemplar, de boa educação e conduta, isso não quer dizer que eu não tenha sido uma criança quietinha e retraída. Eu era tímido, mas eu sempre fui criança. Nasci em berço evangélico, e quando ainda muito novo, talvez aos 5 anos de idade, ingressei numa religião que me oferecia uma boa educação, bons valores e muitas regras de conduta. Certamente eu era o mais dentro da caixinha, a “ovelha” mais exemplar, o adolescente que dava orgulho à igreja, aos meus pais, o jovem com o qual as mães queriam que suas filhas se casasse, o futuro pastor, o menino de muitos dons, usado por Deus. Na igreja eu cantava, tocava, compunha, deixava compromissos familiares para me dedicar. Os prazeres terrenos nunca interromperam minha caminhada, eu nunca quis sair em festas, nem beber, nem fumar ou usar drogas, muito menos me relacionar sexualmente, até o dia em que eu estava descobrindo o que seria a maior confusão emocional da minha vida: minha sexualidade.
Ainda adolescente eu comecei a entender que eu era diferente, além da hipersensibilidade, da sensitividade aflorada, da espiritualidade exacerbada, eu olhava para os meninos de maneira diferente. Eu os achava bonitos, o que é natural, mas era uma beleza que envolvia o desejo muitas vezes não sexual, mas de estar por perto. Fui crescendo com essa perturbação, até que mais jovem evoluiu, eu comecei a pensar na possibilidade de eu ser gay, mas é claro que eu não ia aceitar tão facilmente isso. Culpei a Deus! Tantas vezes na igreja, em casa, e em qualquer lugar que dava espaço à autorreflexão eu chorei por ser assim.
“Como eu posso ser assim? Por que esse castigo? Eu sempre fui um servo fiel, fiz as coisas que o Senhor mandou, orava, conversava contigo. Por que isso sobre mim? Como o Senhor me fez assim? Por que agora eu vou para o inferno? Tira isso de mim!”. Essas eram algumas das expressões de sofrimento que carregava comigo diariamente.
Aos 18 anos eu estava cansado de relutar contra minha natureza, eu disse: “Deus, me aceita como eu sou”. Tantas vezes Deus falava comigo: “Eu sei quem você é. Eu te fiz assim”. As pessoas não entendiam essa fala, também não entendiam a minha grande comoção ao ouvir essas coisas, nem eu mesmo entendia. Contei aos poucos para algumas pessoas sobre isso, e cada vez que eu contava isso me ajudava a entender que elas não viam como um monstro. Eu era um ser humano como todos os outros.
CAPÍTULO 2: A PRIMEIRA GRANDE DECISÃO
Aos 20 anos de idade, o menino prodígio da igreja, cheio de funções, também de reconhecimento pelos seus dons, o orgulho da família, o mais correto dentre os seus, resolveu rasgar o fino véu que o separa de sua realidade.
Foi descoberto diversos escândalos envolvendo a igreja perfeita na qual eu cresci, e eu, cego e dentro da caixinha, nunca pensei que isso fosse acontecer um dia, me decepcionei com a instituição, tive informações secretas a respeito do negror que representa aquela entidade religiosa e eu não quis mais estar ali, mas ainda assim queria estar perto de Deus. Escrevi uma carta de desligamento e publiquei no facebook, eu não quis conversa com o pastor e nem com ninguém, apenas o fiz e depois contei para minha mãe, foi a primeira grande decisão da minha vida.
Para a surpresa de todos, e também decepção. Quando deixei tal corpo, me tornei a ovelha negra, o caído. Visitei outras igrejas, fui membro de outras, mas depois ter experimentado o labor da liberdade, eu queria estendê-la para meus aspectos pessoais. Então, com essa idade decidi experimentar o que minha natureza pedia, mas não foi simples, afinal, eu tinha muitos resquícios d vida cristã, muitas resistências que carrego até hoje, e eu tinha ainda meus valores, alguns mudaram até aqui, mas muitos permaneceram, como este que mais prezo: até se fora para apenas beijar na boca, que seja alguém de alma boa. Assim eu levo minha vida distante da promiscuidade tão evidente no mundo homossexual.
CAPÍTULO 3: A SEGUNDA GRANDE DECISÃO
Contei para minha mãe. Naquela noite não consegui dormir. Há muitos meses eu queria contar para minha mãe quem eu era. A mamãe sempre confiou em mim, ela nunca foi de se preocupar comigo porque sabia que eu não estava fazendo nada de errado. Até mesmo quando eu saí da igreja, ela não se importava, porque sabia que eu era prudente, que eu tinha o tão dito juízo. Eu queria fazer jus a essa confiança.
Eu me sentia mal por ela não saber o que eu estava vivendo, eu sentia estar traindo sua confiança, e eu estava sozinho enfrentando tudo aquilo. Eu sabia que mesmo ela sabendo a respeito da minha sexualidade, eu ia continuar sozinho, mas eu seria justo, eu não estava escondendo a minha identidade.
Assim que amanheceu o dia, que o céu tinha acabado de clarear, eu fui acordá-la, mexendo nos seus pés bem discretamente para não a assustar. Eu disse “mãe, preciso te contar uma coisa”. Sentamos na mesa e eu comecei a chorar incontrolavelmente, e ela preocupada, porém sem reações bruscas apenas perguntava “o que foi, meu filho?”, e eu apenas pedia perdão, chorando e pedindo perdão, então me acalmei e disse “eu gosto de meninos”. Mamãe abaixou a cabeça, algumas poucas lágrimas caíram de seus olhos porque estava perplexa e surpresa, e ela dizia que não havia me criado para isso, ainda mantendo a sua serenidade, dizia que eu devia ir a um psicólogo, que ia conversar com o pastor para orar, que eu estava possuído, que eu havia sido influenciado e eu insistia e chorando que não era nada disso, que eu havia pensado durante anos e sofrido, e que eu não queria mais trair a confiança que era depositava em mim.
Eu resolvi contar porque eu estava apaixonado por um rapaz, e pela primeira vez eu havia sido correspondido, então encontrei força para contar. Depois não foi como eu pensei, mas minha mãe agora sabia de mim, ficou pelo menos uma semana sem olhar nos meus olhos ou me dirigir a palavra, e isso tornava tudo mais pesado e mais difícil.
Cada vez que eu enfrentando essas pedras eu abria caminho para o autoconhecimento, era como se eu estivesse preparando as malas para uma intensa viagem dentro de mim mesmo. Eu sempre agi com responsabilidade e continuei não me entregando aos prazeres terrenos, nem mesmo aos sexuais, que aconteceu apenas com um rapaz até este momento.
Aos poucos eu fui entendo que era preciso romper com grandes construções sociais e pessoais para eu descobrir quem eu era. Enfrentar tudo isso era exatamente a fase do desamor, eu estava desamando tudo o que não era meu, tudo que não era eu. Eu estava me desamando para então impregnar o amor próprio.
Estava uma bagunça a minha cabeça, meu cérebro parecia um armazém antigo de velhas roupas, de velhas lembranças de uma velha vida na qual eu era o escrevo principal. Eu precisei revirar os escombros da minha memória e limpar o palco dessa história em que eu era o protagonista. Cada vez que eu mexia naquela poeira eu descobria pequenos afetos de mim que eu perdi no tempo.
Eu lembrei muito do meu avô que eu perdi em 1999, quando eu tinha aproximadamente 7 anos de idade. Meu avô era meu protetor, com quem eu ficava 24 horas por dia, ele me ensinou a andar de bicicleta e pegou todas as vezes em que ela ia cair. Ele me deu colo todas as vezes em que minha mãe ou minha avó iam me dar aquela merecida surra. Certamente ele seria o único que abraçaria quando eu contasse sobre minha sexualidade. Um pausa aqui, por favor.
Meus amigos da igreja amavam mais a igreja do que a mim, todos eles me viraram as coisas. Minha mãe fingiu que nada estava acontecendo, ignorou minha situação e ainda hoje acredita na cura, minha irmã mais nova me aceitou exatamente assim e nos tornamos mais amigos, minha irmã mais velha e meu pai não sabiam até eu dizer isso por mensagem, sem coragem para enfrentar mais uma reação de negação, meu pai, sempre foi muito bruto e grosso, certamente não me negaria alguns socos, tapas outras formas de violência.
Contei para meu pai e minha irmã mais velha recentemente, nessa fase maravilhosa de amor próprio.
CAPÍTULO 4: O PONTO DA VIRADA É SE ORGULHAR DO SEU AVESSO
“Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”.
Carl Gustav Jung.
Em 2013* comecei estudar uma pós-graduação em Arteterapia. A Arteterapia é um procedimento terapêutico que lida com a simbolização dos conteúdos internos, promovendo o diálogo com esse universo interior e conseguintemente qualidade de vida. Ela nos dá uma especialização, podendo até abrir nosso próprio senting terapêutico.
Desde sempre me interessei pela área de humanas da vida. Sempre ouvi minha intuição, sempre fui o sábio da turma, o conselheiro, sempre me achei o grande velho, que tinha a visão romantizada da vida (até hoje), o mais ingênuo e ao mesmo tempo o mais observador, que aprendia com cada movimento que o universo fazia.
Psicologia foi o meu grande sonho, eu sabia que um dia teria de aprender a me entender. Vi no curso de Arteterapia a possibilidade de uma formação, mas sobretudo de um autocuidado. Eu entrei lá pedindo socorro. Estava nos meus olhos, no meu corpo, a minha dureza e minha alma ferida, toda ensanguentada depois de enfrentar tantas pedras no caminho.
Eu estava justamente compenetrado em revirar o meu avesso. Cada vez que eu mexia nele eu me surpreendia com o que eu era capaz. Cada vez que eu ia, corajosamente, mais fundo, eu trazia essa força para fora, para minhas atitudes. Quantas vezes eu chorei para me desfazer de pedaços de mim que eu não queria mais. Mas só fui capaz de me desfazer quando eu descobria que era hospedeiras da minha energia.
É simples: enquanto não nos perguntamos sobre a função de cada aspecto da nossa vida, não tomamos consciência do valor que aquilo tem. Quanto começamos a digerir perguntas sobre nós mesmos, o processo de indigestão é mais rápido, porque percebemos a futilidade nos está impregnada, mas nossa essência não é fútil, então ela está se ali por quê? Porque nós estamos permitindo.
Nos acostumamos com tudo que temos e conquistamos. Conquistamos tantas coisas durante a vida e não sabemos seduzir a nós mesmos, não sabemos o que nos agrada, não sabemos o que queremos, não sabemos o que viemos fazer na terra, não sabemos o porquê de tantas dores, tantas lágrimas. Não sabemos de nada, porque saber é um processo de garimpagem e nós somos nosso próprio terrenos. Nós é que seremos as únicas pessoas capazes de nos escavar e as ferramentas vão ferir sim! Vão sangrar. É o processo do desamor.
O processo do desamor só se inicia quando temos a consciência de que precisamos nos amar. Não simples dizer: agora eu me amo! Não é assim! Sabe por quê? Porque o amor precisa ser incondicional, é a sua forma genuína. Quais são as nossas condições?
O processo de desamor nos descasca, vai tirando cada couraça que nos torna impenetráveis. Se somos terreno de garimpagem, precisamos ter a consciência de que vai doer e vamos achar tesouros em estado bruto ainda, para refiná-los, para lapidá-los, também vai doer.
Sabe qual a forma genuína da infelicidade? É não saber o porquê dela. Não ter direção abre espaço para irmos em qualquer caminho. Quando vamos em qualquer caminho não nos satisfazemos, a nossa insatisfação atinge uma casa inteira, atinge a todos que estão a nossa volta, principalmente os que se importam conosco. Por isso, trilhar o caminho do amor próprio quando se tem pessoas por perto, pode ser mais doroso ainda, porque todas elas estavam acostumadas àquele ser humano igual há anos, a mudança pode ser uma bomba de decepções, e vai ser, por isso, é nesse caminho que precisamos entender as possíveis consequências, mas se você tem certeza do que está fazendo, pode acreditar, vai doer pouco, e o consolo será “eu estou sendo justo, eu preciso fazer algo por mim ao menos uma vez na vida”.
Quando olhamos para nós mesmos, para nosso avesso, percebemos o que (1) nos falta, o que (2) temos demais, o que (3) não é nosso e o que (4) nos pertence de fato. Vamos conversar sobre esses itens:
1 – o que nos falta
temos de correr atrás para completarmos o ciclo. Me faltava coragem. Eu era um menino medroso, eu não queria tentar, eu vivia preso na ideia de futuro, no medo com o qual fui educado na religião. A coragem começou a vir aos poucos, em atitudes muito pequenas como transgredir algumas regras, por exemplo, ultrapassar o sinal vermelho. Sim, literalmente eu fazia pequenos testes de experimentação de coragem. Outra coisa, começar a falar sobre o que eu sentia, então comecei a chegar para as pessoas inesperadamente e dizer a elas como eu as gostava. Também comecei a experimentar a coragem de dizer “não”. Essa foi bem difícil, mas eu precisava aprender a me autoafirmar ou eu continuaria sendo escravo da opinião alheia e sendo mera cópia do mercado. Então, comecei a dizer não quando eu realmente não queria emprestar coisas, foi com atitude mínimas; quando eu não queria ir a tal lugar; quando em roda de amigos eles queriam fazer uma coisa e eu dizia “acho melhor isto, só para deixar a minha opinião”.
A busca por algo que nos falta precisa começar em doses homeopáticas, na verdade, todo esse processo é muito vagaroso, cheio de reflexões de divagações. O que está te faltando? Por favor, nada de coisas materiais nesse processo. Absolutamente nada. O material vai se instalando aos poucos. Quando você mudar, tudo vai mudar, sua casa então nem se fala!
2 – o que temos demais
pode ser um elemento atrapalhador, o ideal é que as coisas se equilibrem. Um aspecto que eu desenvolvi foi o de dizer fazer aquilo que eu não fazia. Por exemplo, mentia por coisas mínimas para me sentir incluído, eu dizia ter lidos livros, assistido a filmes, me aventurado, ter dito tal coisa na cara de alguém, tudo para me sentir inserido e para promover o meu ego, mas estas coisas são frutos da baixa autoestima, sobre a qual irei discorrer logo mais no item 4. Esse aspecto comprovava o quanto eu não estava sendo eu ou me distanciava de mim apenas para me sentir querido em determinado grupo, depois essas atitudes me doíam profundamente, eu odiava me esforçar para isso, eu já forçava tudo quando eu não era assumidamente homossexual, e mesmo depois de me assumir eu continuei nessa batalha.
Aprendi aqui que as conquistas não virão todas de uma vez. Não mesmo. Quando abrimos caminhos as pedras aumentam, terá sempre algo para enfrentar, para aprender.
O temos demais ultrapassa o suficiente. Tenhamos só o suficiente. Certo dia publiquei: “quando meus defeito começarem a atingir o próximo, é hora de procurar novamente”. É uma realidade, atinge o próximo tudo que não conseguimos dar conta sozinhos, isso acaba precisando vazar para alguém. Que busquemos o equilíbrio.
3 – o que não é nosso
é de alguém e não seu! Esse processo é parecido com um filtro. É preciso desmascarar suas sombras, de enxergar o monstros que existem em você, alguns ficam outros não. Ou todos ficam e você aprende a lidar. No meu processo aprendi a não negar minhas sombras, mas a caminhar com elas. O medo é uma sombra necessária, por exemplo, mas com esse processo aprendi a não ser o medroso, mas a ser o corajoso que também sente medo. Muitas vezes não vamos conseguir fazer alguma coisa porque uma certa moral nos foi implantada, quando isso me aconteceu um dia eu perguntei: “essa falsa moral é minha?” e logo em seguida respondi: “não, é da igreja”, e concluí: “isso não é da igreja, e não meu. Fique na igreja”. O processo de eliminar o que não é nosso é assim. Outro exemplo, “obedecer por medo é da minha mãe e não meu”; no dia em que estava sendo arrogante com uma pessoa: “esta arrogância é do meu pai, e não minha”. Assim fui descosturando aquilo que não me pertencia e ainda estou nesse caminho. E esse caminho não vai terminar, porque todos os dias morremos e nascemos outra vez.
4 - o que não é nosso
precisa ser eliminado. Eu tinha um aspecto muito negativo: eu me achava o “cocô do cavalo do bandido”, traduzindo, era (ainda sou em menor proporção) refém da baixa autoestima. Ah, mas minha vida era uma catástrofe por conta disso, me envolvi com poucas pessoas, as melhores eu deixei passar por entre os meus dedos porque não me achava bom o suficiente. Eu tinha essa característica demais, e eu precisava me desfazer disso. A baixa autoestima não deveria fazer parte de nenhum ser humano, porém, por causa dela, das crises dela, é que eu parava para refletir sobre mim. Ela me trazia profunda tristeza e angústia, se eu não tivesse a experiência de me embriagar no sofrimento que a baixa autoestima me expunha, eu não teria enxergado o quão ruim é viver dessa forma.
Percebi que eu precisei dela, que ela exerceu um importante papel na minha construção pessoal, mas agora ela não tinha mais razão de ser, razão de estar ali. Precisamos aprender a ser gratos pelos aspectos ruins que nos implodem, eles nos ensinam mais que os prazeres, porque os prazeres tendem a alcançar ou alimentar camadas menos profundas que as desgraças.
Estamos acostumados a ser o que vemos diante dos nossos olhos, mas não é assim se trilha o caminho da individuação (teoria Junguiana), da construção de quem realmente somos. Precisamos encarar a pergunta: “Afinal de contas, quem sou eu?”. Não existe idade para começar a encontrar essa resposta, a minha resposta está se encontrando ainda, desde que resolvi olhar o meu avesso, esquecer o meu corpo e analisar a minha alma, minha natureza, e todos aspectos de mim que o olho externo não consegue enxergar. Estou aprendendo que sou tão bom para mim mesmo, aprendendo a me ser por inteiro, só assim serei plenamente metade de alguém, quando eu for inteiro para mim mesmo. Talvez eu nunca seja metade de alguém, mas se eu for inteiro para mim mesmo, eu sei que não vou morrer de solidão.
CAPÍTULO 5: O QUE APRENDI ATÉ AGORA?
Esta é uma das fatias do processo de garimpagem, do processo de amor próprio. É preciso um estado de negação para chegar no destino “quem”. O destino “quem” é obscuro e cheio de incertezas, é perigoso e o melhor de tudo, é sem volta. Quando você dá o primeiro passo nessa caminho, mesmo desistindo mais tarde, você nunca mais vai ser o mesmo de quando adentrou aos portais de si mesmo.
Eu não consigo escrever tudo de uma vida inteira e sobre o processo que está apenas começando. Para que entendam melhor sobre o tempo, esse processo começou no primeiro grande momento fenomenológico da minha vida, quando tive consciência da minha sexualidade.
Nem todas as pessoas passam por isso, mas você também pode cair nesse momento fenomenológico quando, de repente, é invadido por uma inconsistência de si mesmo, como se, de repente, o chão que você pisa já não é mais seguro, quando as pessoas que você olha já deixam dúvidas sobre o que elas realmente pensam de você, quando você se olha e percebe que tudo que você fez se reduz a nada, não traz o prazer, o vigor. Em casos mais extremos como o meu, cheguei à conclusão de que eu era uma farsa. E pior, as pessoas gostavam daquela farsa, estavam bem com meu disfarce, aí eu descobri que todos também eram uma farsa, mas eu não podia fazer nada por eles, fiz por quem eu podia, tentei fazer por alguns, mas no fim eu descobri que eu só podia fazer por mim mesmo. E fiz.
Certo dia li uma coisa marcante que Paulo Freire escreveu: “somos seres inconclusos, incompletos e inacabados”. Essa frase me deu ânimo para eu cair no mundo e buscar a minha essência, ainda era tempo e sempre vai ter. Mais tarde, numa palestra com Zé da Ponte, idealizador da tão famosa Escola da Ponte, em Portugal, ele disse: “Somos seres irreptíveis”. Eu chorei nessa palestra porque ele sabia o que estava dizendo, e eu não me sentia irreptível, eu me sentia uma cópia bastarda da existência. Ainda quando universitário de Pedagogia, meus olhos se abriram, mas meu olhar ainda procurava um horizonte.
Comuniquei as pessoas mais próximas que eu ia mudar. E mudei até de cidade. Preparei minha família um ano antes para a minha radical mudança. Mudei meu sonho de fazer Psicologia para estudar Artes Cênicas, porque ela ia me dar uma surra integral de autoconsciência, porque lidaria com meu corpo, com minhas memórias, com meus valores, com minhas sombras. E foi aí que criei o Intrateatro, minha pérola, minha razão acadêmica de ser. O Intrateatro é toda essa história.
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Sobre Allan Maykson
É graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice onde desenvolve trabalhos de música, poesia e contação de histórias.
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