sábado, 3 de dezembro de 2016

NÃO CRIO PORQUE TENHO VONTADE, CRIO PORQUE A VONTADE ME TEM


"Ao mesmo tempo ser ator é um desbunde, um êxtase, entregar-se ao inesperado do momento, da produção orgânica que "pula" do corpo e vai se sucedendo efeito dominó."

Rejane Arruda

De repente estamos no quarto, banhados pela desvontade, exaustos pela indisposição - isso precisa ser dito em primeira pessoa. De repente estou no quarto, banhado pela desvontade, exausto pela indisposição, embebido pelo não-fazer quando se deve fazer; foragido da responsabilidade, dilacerado pela minha capacidade de simplesmente não levantar. Fico lá, com um travesseiro no pesçoco, outro as pernas olhando o celular, o mundo acontecendo, e eu lá, de repente, leio um texto no facebook que me dá um tapa na cara e me traz para exatamente onde estou agora: minha escrivaninha. 

        Um texto de Reajane Arruda que me trouxe milhões de imagens e uma vontade dantesca de chorar, de me esvaziar. Eu me senti
"Um estrangeiro que morre em seu próprio quarto e ninguém percebe. A sua esposa não percebe. Até que a "terapeuta" lhe provoca: "Já pensou na hipótese dele estar morto"?" 

          Mais uma vez, o mundo está criando, pessoas estão vivendo, fazendo coisas, trabalhando, e eu estou deitado à mercê da minha procrastinação, com minha mente sensível e pronta para desenvolver tantas ideias. Eu não queria mais me esvaziar com lágrimas e me mergulhar em meu travesseiro. Não! Eu tive vontade de me esvaziar aqui. No texto tantos verbos "penso", e esses verbos me invadiram e daqui a pouco aquela poesia tornou-se minha. Eu me sufoquei por alguns segundos. 

        Agora me vêm palavras soltas, e talvez sejam elas um sintoma de que algo daquela diegese me pertence. As palavras, pensamentos, figuras, imagens, fotografias percorrem meu corpo, elas passam vagarosamente como um as neves dentro de um globo de cristal, como grandes encontros numa câmera lenta ou como a toca do coelho quando Alice cai... É isso! 

        De repente estou no quarto, banhado pela desvontade, exausto pela indisposição, então palavras me tocam. Assim como Bondiá (2016) 
"Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras." 

        O descontrole, a invasão, a irrupção são pensamentos que precisam ser traduzidos pelas palavras. É o ato criativo é um fenômeno. Não crio porque tenho vontade, crio porque a vontade me tem. Crio porque naquela momento inesperado o meu pensamento esteve em contato direto com minha natureza pura de filho de uma criação; Crio porque a minha essência acabou de ser atingida por uma via que nem mesmo a ciência é capaz de alcançar. Crio porque se eu não criar naquela hora, serei um assassino de um pedaço de mim. E os meus pedaços, minhas fatias, meus restos, compõem quem eu sou e querem atenção. 

        Encontro no mundo do teatro a magia de ser quem eu sou sem nunca querer ser. Ele pega minhas memórias mais dolorosas e transforma, dá forma, deforma, me informa que nem todas as coisas precisam ser peso ou cárcere. 

      No mesmo texto de Rejane Arruda publicano no facebook, o fragmento "Sabe que Claudio morreu? E o pior? Ficou morto no quarto durante uma semana e eu não percebi. Achei que o cheiro era do cachorro." me remeteu a uma das maneiras de morrer que já pensei um dia. Até alguns dias atrás estava comentando sobre isso e imaginei como seria para as pessoas ao meu redor me esperar acordar e isso não acontecer, a dor que seria para os vivos presenciar a minha não-presença. Tantas cenas vieram à tona. Tudo isso alimentando um desejo de desabafo. 

        Esse desejo de desabafo que me penetra é muito frequente. Me sinto à mercê da linguagem. As coisas estão sempre me comunicando algo e meu corpo sempre que dar resposta para esse algo que eclodiu. 

      Em Alice a Duquesa me desassossegou o tempo inteiro. Me tirou noites de sono em nome de uma composição. Muitas coisas do cotidiano me remetiam aos meus personagens, atitudes, modos de agir com os outros, meu terrível ar de sabedor de todas as coisas... Eu nunca estava seguro. Mas a segurança, neste contexto, não nos serve: 
"O desconforto é um mestre. O bom ator corre o risco de se sentir desconfortável o tempo todo. Não há nada mais emocionante do que ensaiar com um ator que está disposto a pisar em território desconfortável. A insegurança mantém as linhas tensas. Se você tenta evitar sentir-se desconrtável com o que faz, não vai acontecer nada, porque o território permanece seguro e não é exposto. O desconforto gera brilho, realça a personalidade e dezfaz a torina." (BOGART, 2011, p. 118)






           Muitos dos meus problemas e anseios foram sanados nos ensaios gerais. Eu tinha uma Alice Sombra que carecia de um objeto nas mãos para um efeito de Divisão de Foco, que seria um elemento enquanto ela não falava; a Duquesa ainda precisava colocar em cena a voz que encontrou há alguma semanas; o Dodô estava com dificuldades de assumir um corpo diferente do Allan; o Guarda Real precisava encontrar uma forma própria de andar que não fosse o clihcê, o tradicional que se vê nas tropas; o Ouriço-músico que se quer teve tanta atenção. Eu tinha todos esses problemas. Cada personagem com o seu. Muitas respostas apareceram nos ensaios gerais no dia da estreia. Bem nos últimos instantes. 

         O Ouriço-músico não foi um personagem, na verdade, foi eu com máscara. A voz que apareceu deveu-se ao fechamento da máscara no rosto que limitou os movimentos faciais culminando numa voz teatral. 



         O dodô encontrou seu corpo de ancião em cena e uma voz que precisei adaptar devido às limitações da máscara também. Ele ficou genuinamente um Dodô. Com seu modo próprio de conversar, de andar pelo palco, de interagir com os outros personagens, de se sentar, de se impor. 


 Foto: Hid Said

                                                                     Foto: Hid Said



       Foto: Laís Pimentel
          
          A Duquesa conseguiu assumir sua voz apenas na estreia. A voz de furo, como citei nos blogues passados. Ela ultrapassou minhas expectativas, me senti satisfeito pelo trabalho realizando com ela, pela dedicação e profundidade que essa personagem me traz. O desenho do figurino, que também foi uma catarse após ler um texto de Bya Braga, mais precisamento o trecho "A figura formada não precisa se revelar coesa [...]" contribuiu em grande porcentagem para meus esforços em construir um personagem-monstro. (BRAGA, 2007, p. 2)


         

       O Guarda-real encontrou seu jeito de andar, que por sinal era um tanto cômica, com passos longos, ritmados, com as mãos seguindo o compasso que tremiam, simbolizando uma parte frágil por de trás de tanta autoridade. O Guarda real ria de si mesmo por dentro, odiava a vida que levava, e precisava se manter firme no seu ofício. Era livre apenas nas horas de caminhar fora do campo de visão da Rainha. 





         A Alice Sombra não conseguiu ser fotografada. Ela tinha uma regra de jogo: não pare nunca. Toda sua sensualidade e auto-confiança se externavam pelo seu modo de andar e transmitir olhares para a plateia com tom desta fala interna "eu sou poderosa". Era uma personagem pronta, a única coisa que não estava finalizada era o texto. O fato de não saber o texto por completo gerou uma tensão interna que dava movimento ao corpo para extravasar aquela insegurança toda. Movida pelo não saber e pela ansiedade, Alice Sombra perambulou pela plateia inteira, ah, e precisou se recompor após perder a peruca por conta do seu atraso na hora de entrar em cena. 


         A grande verdade é que o Eu-circunstanciado (Stanislavski) não está inerente apenas à nossa presença ou ao empréstimo de nós enquadrados em um universo diegético, estamos circunstanciados a partir do momento em que assumimos nossos papéis e temos de conviver com eles até a estreia de um espetáculo. Discorro sobre isso porque, a partir do momento em que eu sabia quem eu seria em Alice, tudo lá fora me servia de elemento agregador para algum dos meus personagens, se eu estivesse no ônibus parado escorado na janela, eu estava pensando em Alice; se eu estivesse indo pro trabalho apreciando o vento e o mar, como de costume, eu estava imaginando Alice e muitas vezes me vi rindo da Alice Sombra, de tudo que ela era capaz de fazer, dos momentos de construção do figurino junto à Sami Gotto, minha amiga e colega de sala. Se eu estivesse passando na Terceira Ponte e visse as instalações da Marinha, eu imaginava que Guarda Real eu seria, assim, meu pensamento ia costurando sua longa colcha de retalhos, cheia de linhas, de cores, de sonhos, de obscuridões, de fotografias, de lembranças, de memórias, de sonhos, até literalmente. Madrugadas não foram completadas porque eu tive de dar ouvido aos meus pensamentos "Alicenógicos".

         Quantas vezes acordei para fazer poemas sobre mim, porque meus personagens colocavam minha identidade à prova, minhas personas, meus eus. Quantas vezes precisei chorar porque as palavras não queriam assumir para mim mesmo que eles eram verdades minhas, intrínsecas, que me habitavam. Quantas vezes...  


         Todas as vezes em que eu era invadido pelos meus monstros e pelos meus sonhos eu corria para o grupo no whatsapp que só tem eu e lá eu depositava meus pensamentos em forma de poemas, estes fenômenos só me fazem terminar este discurso com este precioso dizer que aceita nossas alterações, desequilíbrios, instabilidades, vacilações, incertezas, colapsos, declínios, decadências, decrescimentos,  paralisações,  tensões, conflitos, perturbações, transtornos,  confusões, comoções, contendas...:


“É nesses momentos de crise que a inteligência inata e a imaginação intuitiva entram em campo” (BOGART, 2011, p. 131)


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Referências Bibliográficas 


BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011.

BRAGA, Bya.  Ator de prova: questões para uma ação-física coral. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. UFMG, 2007.


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