Allan Maykson Longui de Araujo²
“É preciso que o ator
saiba perceber a conexão imediata entre imaginação e sensações corporais
correspondentes; [...] e trabalhe com os cinco sentidos a fim de desbloquear a
energia dramática necessária à produção gestual espontânea.”
Sônia Machado de
Azevedo³
A construção do corpo não se dá inteira e unicamente pelo corpo.
Elaborar um corpo requer trabalho. Muito trabalho. São pesquisas teóricas e
corporais, experimentação de procedimentos múltiplos, mas principalmente o
ouvir-se, conversar-se. O trabalho interno a fim de construir um corpo é
primordial para ator, porque o tempo inteiro estamos simbolizando, criando
imagens, solicitando o imaginário. Somos, de fato, potencialmente criativos, e
seres intuitivos, e ao canalizar tais manifestações no trabalho corporal
conseguimos obter resultados genuínos de um corpo que só existe neste corpo,
que este indivíduo conseguiu articular.
O trabalho
corporal é uma gestação que merece os melhores cuidados. E os melhores cuidados
num trabalho atoral resumem-se em energia, e sobre ela podemos discorrer sobre
alguns conceitos, como o de trabalho e o de pulsão. Os cuidados com o corpo na
perspectiva do trabalho do ator estão relacionados à organicidade, à presença,
à inteireza desse corpo no processo, que só é possível numa relação
dentro-fora, termo de relação que aprendi em Azevedo (2008, p. 185):
O
corpo deve ter enfim uma conexão dentro-fora durante todo o trabalho
preparatório de construção da máscara: a
atenção volta-se igualmente para o corpo e para o mundo imagístico do qual
ainda vive a personagem. Sempre na tentativa de estabelecer relação entre
pensamentos e emoções, emoções e sensações físicas, sensações e impulsos para
ação.
Me pergunto: sem essa conexão é
possível pensar o corpo, abrir o corpo, percorrer o corpo, pesquisar o corpo?
Mas, por que pensar o corpo, abrir o corpo, percorrer o corpo e pesquisar o
corpo? É uma das vias para a expressão extracotidiana cara para nós, atores; é
uma das vias de pulsão quando solicitamos que o corpo faça ações que não está habituado
a fazer; é uma das vias de energia corpórea, porque há um deslocamento psíquico
-orgânico da zona de conforto desse corpo, que só é movido com trabalho, um
trabalho dentro-fora. Contudo, assim como Barba (1994, p. 33) penso que “Falar
de "energia" do ator significa utilizar um termo que leva a mil
equívocos”, para ele “A palavra energia deve ser rapidamente repleta de
virtualidade operativa. Etimologicamente significa "estar em trabalho”.
Quando cito “deslocamento
psíquico-orgânico” faço alusão direta ao “estar em trabalho”, no sentido de que
o corpo se move inteiro, se expõe, se desloca em prol de uma descoberta de suas
infinitas fisicalidades. Ele percorre o espaço em estado distorcido, preciso,
extracotidiano, repleto de estímulos internos e externos que tencionam e
incidem a ação corporal.
Recorro à teoria do arranjo e
enquadramento de Arruda (2015) como exemplo desse grito de ações que dá título
a esse artigo:
A função do arranjo implica um trabalho com diferentes modalidades de
material (palavra, objeto, som, imagem, movimento) a um só tempo. Estes
materiais exercem sobre o ator a excitabilidade. É o que, em última instância,
define uma escolha (em detrimento de outras): o que causa excitabilidade (em
outras palavras, o que incide).
Um exemplo prático: no laboratório
de Artes Cênicas, no palco individual, recebemos a orientação de fazermos um
gesto incessante com a mão, e aos poucos deixar com que esse gesto invadisse
todo o nosso corpo. Ela começa sucinto, quase imperceptível, a vida em um dedo,
e gradativamente aquela pulsão caminhava para cada molécula do corpo até que
todo ele participava. O mesmo era com o quadril, a ação era mover o quadril
para frente e para trás, como uma ação sexual mesmo, deixávamos com que
gradativamente isto nos invadisse e assim o fiz. Foi um momento de muitas
quebras de paradigmas internos, pessoais. Um gesto profano baseado na minha
criação, um gesto que despertava desejos em mim encapsulados, o ato sexual é um
desejo até uns meses, retido para mim. Eu estava em vários desafios, em muitas
atmosferas, existir uma atividade interna desesperada que imergia, respingava
no chão da sala por meio do suor, todo meu esforço. Confesso que fiquei com
medo de parar e quebrar aquele fluxo energético. E é possível.
Pode
acontecer também, que, nesse momento em que o invisível está pronto a se tornar
inteiramente visível na máscara corporal assumida, os impulsos orgânicos, em
direção ao ato, sejam de algum modo interceptados e estancados em seu fluxo,
por um reflexo inibitório do próprio ator. O corpo parece, nesses casos, reagir
com violência ao nascimento do movimento novo, servindo como um grande freio,
que impede a energia de viabilizar-se em forma aparente. (BARBA, 1994, p. 37)
Porém, todos
os meus dogmas entalados na minha garganta desciam e também estavam naquelas
gotas de suor, de repente, eu não me controlava mais, o corpo ia por si só
naquela ação absurdamente vulgar, logo o corpo não deu conta sozinho e a voz
foi se achegando com ruídos de gemidos quase sem ar, que também me
envergonhavam, mas era isso que eu queria, eu precisava respirar assim, eu
precisava estar inteiro. Não era mais teatro, era terapia, era Intateatro4.
Foi uma experiência na qual mitos
conteúdos pessoais foram afetados e ameaçados, e claro, o equilíbrio. Barba
(1994, p. 37) justifica:
A
simples imaginação causada, ao pedir-lhes que imaginem que estão carregando um
peso, correndo, caminhando, caindo ou saltando, produz uma modificação imediata
de seus equilíbrios, ao passo que não o produz em outras pessoas, para as quais
a imaginação se fixa no mundo das idéias sem conseqüências físicas
perceptíveis.” Estamos tratando de uma mente dilatada e seus vazamentos para
tessitura corporal.
Quando ocorre esse vazamento das
emoções ou da imaginação para a tessitura corporal, constatamos o quanto o ator
esteve inteiro na sua busca interior por um corpo. O corpo traduz os conteúdos
internos que são abstratos, e essa tradução se dá com a figuração de uma
abstração também, se vê um desenho corporal que não se compara ao cotidiano, e
daí é que surgem corpos preciosos para o trabalho atoral.
Existem metodologias, procedimentos e técnicas que se
revelam como potentes ferramentas de construção corporal. Mas é válido
sublinhar que
[...]
a técnica é uma utilização particular do corpo. O nosso corpo é utilizado de
maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas situações de
representação. No contexto cotidiano, a técnica do corpo está condicionada pela
cultura, pelo estado social e pelo ofício. Em uma situação de representação
existe uma diferente técnica do corpo.
As
técnicas cotidianas são muito mais funcionais quando não pensamos muito nelas.
Por isso nos movemos, nos sentamos, carregamos peso, beijamos, indicamos, assentimos
e negamos com gestos que acreditamos "naturais" e que, em vez disso,
são determinados culturalmente. (BRABA, 1994, p. 30)
Em uma outra experiência tínhamos de reunir em duplas,
fizemos uma espécie de jogo de marionete pelo espaço do laboratório de Artes
Cênicas. Existia um “controlador”, este deveria segurar o parceiro com uma mão
na região torácica e a outra nas costas, o parceiro deveria sentir-se
leve-livre-solto para acompanhar os direcionamentos do controlador, que o
levaria para um percurso, um passeio. Esse procedimento é caro para construção
de um corpo extracotidiano, para um trabalho energético, para desenvolver a
confiança entre os atores, e traz uma sensação de empoderamento de si, uma
sensação de estar vivo sem esforçar-se para viver e ao mesmo tempo gozar do
labor da vida. Ser levado, deixar-se levar, ao mesmo tempo estar em trabalho,
uma linha tênue entre o cênico e a própria vida. Um estado de devir importante
para que o cênico se instale, é como se estivéssemos nos abrindo para o porvir,
o porvir é o mergulho em si mesmo com um olhar minucioso para estabelecer
conexões e encontrar a essência do personagem na do ator.
[...]
arte e vida se confundem: se as crianças aprendem brincando a assumir com
verdade (com energia vital) os mais diferenciados papeis [...] e,
intuitivamente, conseguem manipular tais configurações básicas de esforço rumo
a qualquer objetivo a que se proponham, [...] o ator deverá também buscar, em
si mesmo, os recursos ocultos, guardados em sua história de vida, para
estabelecer, de fato, uma conexão de outra ordem, imaginária agora; para
vitalizar e da cor ao seu papel.” (AZEVEDO, 2008, p. 188-1889)
Nos depoimentos dos alunos alguns citaram a semelhança
das ações com as de possessão de entidades de culturas afro, e também notei
isto. O corpo totalmente entregue, os olhos fechados, a quase ausência de
expressão facial, uma elevação, quase uma ação espiritual. Utilizo esse
procedimento como aquecimento antes do espetáculo Alice, justamente porque ele
me traz a sensação de muito trabalho, acorda o corpo, ao mesmo tempo é
libertador e deixa uma leveza como aura. Vale a pena eu pesquisar mais sobre
esse exercício. Até porque, enquanto no primeiro exemplo meu corpo gritava
ações, conteúdos internos, vozes, imagens, este outro me fez apenas sentir um não-estar
de tanto que estive. Num repente, transcendi.
Esse momento de êxtase é inerente ao
processo de criação, e deve ser muito bem degustado para que o máximo de
registros possam ficar impregnados na tessitura e na memória corporal, porque
Tudo,
ao final, deverá ser fisicalizado, para que o esboço original adquira vida no
palco.
É
preciso que o ator descubra como estabelecer a passagem entre o que sua mente
elaborou (visualizou, esboçou, organizou) e o que o seu corpo deve encarnar. O
mundo da personagem terá de ser, todo ele, externado em ações claras, em atos
relevantes de seu interior. (AZEVEDO, 2008, p. 191)
Percebemos que o “campo das ideias
de Platão” nos invade, contudo, é preciso pisar os pés no chão e administrar
tantos conteúdos através do corpo. A presença cênica tão estudada por Eugênio
Barba se dá pelo diálogo dentro-fora, pela mente dilatada que conseguintemente
dilata o corpo. Não entregamos ao público um corpo vazio, perdido, a mercê de
uma encenação, limitada a uma representação, condicionada a estereótipos,
entregamos um corpo crível, de energia trocável, palpável, arrepiável. Muitos
elementos tencionam para a excitabilidade energética de um corpo. Barba (1994,
p. 42) fala sobre a oposição como um dos caminhos de tensão:
O
corpo do ator revela a sua vida ao espectador em uma miríade de tensões de
forças contrapostas. É o princípio da oposição. Em torno deste
princípio-que-retoma, usado por todos os atores, ainda que algumas vezes de
forma inconsciente, algumas tradições construíram elaborados sistemas de
composição.”
Desejo concluir esse artigo com a
ideia de que, ao mesmo tempo em que quero um corpo ideal para aquele
personagem, também quero um corpo inacabado. Como se eu jamais fosse encontrar
o corpo e por isso necessitasse construí-lo sempre. Podemos encontrar um corpo
e utilizá-lo, mas gosto de saber que posso “descoporificá-lo”, desconstruí-lo,
desfragmentá-lo, diluí-lo. É uma ideia que me conforta, por saber que estou
aberto às metamorfoses, e ao mesmo me desequilibra, porque o teatro é
extremamente passageiro.
Finalizo com um poema que me invadiu ao começar a
construir desse sucinto ensaio reflexivo sobre o corpo:
CONSTRÓI-SE
CORPO
Allan
Maykson
Eu quero
um corpo invadido
Pelas
vozes que possuem meu corpo;
Quero um
corpo evadido de mim
Crível
por mim
Executável
em mim.
Eu quero
ser um empréstimo
Um
caminho e não o fim.
Eu quero
ser o inacabado
O corpo
precário
O gesto
inteiro
O gesto
unívoco
Mas que
seja o gesto
A ponta
da massa de gelo.
Eu quero
um corpo presente
E outro
ausente;
Um corpo
gritante
Um corpo
silente
Um corpo
brando
E também
o irreverente
E não
quero um corpo simplesmente
Eu quero
esboço
E grafias
de alma
Quero ser
o bom o moço
E o
inferno da calma
O bêbado
nojento
De vida
pútrida e infame
Um corpo
que pulsa
Que a mim
mesmo me chame.
Um
calabouço de corpo
Um
labirinto de corpo
Um corpo
insuficiente
Porém
dilatado, simples e preciso.
Eu quero
um corpo provisório
Efêmero e
bem desenhado
E não
quero um corpo que acabe
No
inacabado...
04 de
abril de 2017
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Notas
¹ Artigo
sobre a disciplina CORPO III, do curso de Artes Cênicas da Univerdiade Vila
Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia
e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela
Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em
Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente,
Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do
grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto
“Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de
pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”.
Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como
docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como
professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É
membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e
da CIA “Cômodos” de teatro.
³ Escritora, atriz e pesquisadora brasileira, autora do livro “O papel do corpo no corpo do ator”, umas bibliografias da
disciplina de Corpo II do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.
4 “Intrateatro:
procedimentos Cênicos aplicados à Arteterapia” é meu projeto de IC da UVV (Universidade
Vila Velha) em parceria com o Instituto Fênix de Ensino e pesquisa, no qual me
especializo como Arteterapêuta. O projeto discorre sobre os princípios de
Introversão e Extroversão da Psicologia Analítica de Jung em diálogo com
teorias e procedimentos teatrais como potentes mecanismos terapêuticos.
Referências
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. 2.
Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo:
Editora Hucitec, 1994.
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