sexta-feira, 14 de abril de 2017

UM CORPO QUE GRITA AÇÕES¹

Allan Maykson Longui de Araujo²

“É preciso que o ator saiba perceber a conexão imediata entre imaginação e sensações corporais correspondentes; [...] e trabalhe com os cinco sentidos a fim de desbloquear a energia dramática necessária à produção gestual espontânea.”

Sônia Machado de Azevedo³

A construção do corpo não se dá inteira e unicamente pelo corpo. Elaborar um corpo requer trabalho. Muito trabalho. São pesquisas teóricas e corporais, experimentação de procedimentos múltiplos, mas principalmente o ouvir-se, conversar-se. O trabalho interno a fim de construir um corpo é primordial para ator, porque o tempo inteiro estamos simbolizando, criando imagens, solicitando o imaginário. Somos, de fato, potencialmente criativos, e seres intuitivos, e ao canalizar tais manifestações no trabalho corporal conseguimos obter resultados genuínos de um corpo que só existe neste corpo, que este indivíduo conseguiu articular.

            O trabalho corporal é uma gestação que merece os melhores cuidados. E os melhores cuidados num trabalho atoral resumem-se em energia, e sobre ela podemos discorrer sobre alguns conceitos, como o de trabalho e o de pulsão. Os cuidados com o corpo na perspectiva do trabalho do ator estão relacionados à organicidade, à presença, à inteireza desse corpo no processo, que só é possível numa relação dentro-fora, termo de relação que aprendi em Azevedo (2008, p. 185):

O corpo deve ter enfim uma conexão dentro-fora durante todo o trabalho preparatório de construção da máscara: a atenção volta-se igualmente para o corpo e para o mundo imagístico do qual ainda vive a personagem. Sempre na tentativa de estabelecer relação entre pensamentos e emoções, emoções e sensações físicas, sensações e impulsos para ação.

            Me pergunto: sem essa conexão é possível pensar o corpo, abrir o corpo, percorrer o corpo, pesquisar o corpo? Mas, por que pensar o corpo, abrir o corpo, percorrer o corpo e pesquisar o corpo? É uma das vias para a expressão extracotidiana cara para nós, atores; é uma das vias de pulsão quando solicitamos que o corpo faça ações que não está habituado a fazer; é uma das vias de energia corpórea, porque há um deslocamento psíquico -orgânico da zona de conforto desse corpo, que só é movido com trabalho, um trabalho dentro-fora. Contudo, assim como Barba (1994, p. 33) penso que “Falar de "energia" do ator significa utilizar um termo que leva a mil equívocos”, para ele “A palavra energia deve ser rapidamente repleta de virtualidade operativa. Etimologicamente significa "estar em trabalho”.

            Quando cito “deslocamento psíquico-orgânico” faço alusão direta ao “estar em trabalho”, no sentido de que o corpo se move inteiro, se expõe, se desloca em prol de uma descoberta de suas infinitas fisicalidades. Ele percorre o espaço em estado distorcido, preciso, extracotidiano, repleto de estímulos internos e externos que tencionam e incidem a ação corporal.

            Recorro à teoria do arranjo e enquadramento de Arruda (2015) como exemplo desse grito de ações que dá título a esse artigo:

A função do arranjo implica um trabalho com diferentes modalidades de material (palavra, objeto, som, imagem, movimento) a um só tempo. Estes materiais exercem sobre o ator a excitabilidade. É o que, em última instância, define uma escolha (em detrimento de outras): o que causa excitabilidade (em outras palavras, o que incide).

            Um exemplo prático: no laboratório de Artes Cênicas, no palco individual, recebemos a orientação de fazermos um gesto incessante com a mão, e aos poucos deixar com que esse gesto invadisse todo o nosso corpo. Ela começa sucinto, quase imperceptível, a vida em um dedo, e gradativamente aquela pulsão caminhava para cada molécula do corpo até que todo ele participava. O mesmo era com o quadril, a ação era mover o quadril para frente e para trás, como uma ação sexual mesmo, deixávamos com que gradativamente isto nos invadisse e assim o fiz. Foi um momento de muitas quebras de paradigmas internos, pessoais. Um gesto profano baseado na minha criação, um gesto que despertava desejos em mim encapsulados, o ato sexual é um desejo até uns meses, retido para mim. Eu estava em vários desafios, em muitas atmosferas, existir uma atividade interna desesperada que imergia, respingava no chão da sala por meio do suor, todo meu esforço. Confesso que fiquei com medo de parar e quebrar aquele fluxo energético. E é possível.

Pode acontecer também, que, nesse momento em que o invisível está pronto a se tornar inteiramente visível na máscara corporal assumida, os impulsos orgânicos, em direção ao ato, sejam de algum modo interceptados e estancados em seu fluxo, por um reflexo inibitório do próprio ator. O corpo parece, nesses casos, reagir com violência ao nascimento do movimento novo, servindo como um grande freio, que impede a energia de viabilizar-se em forma aparente. (BARBA, 1994, p. 37)

Porém, todos os meus dogmas entalados na minha garganta desciam e também estavam naquelas gotas de suor, de repente, eu não me controlava mais, o corpo ia por si só naquela ação absurdamente vulgar, logo o corpo não deu conta sozinho e a voz foi se achegando com ruídos de gemidos quase sem ar, que também me envergonhavam, mas era isso que eu queria, eu precisava respirar assim, eu precisava estar inteiro. Não era mais teatro, era terapia, era Intateatro4.

            Foi uma experiência na qual mitos conteúdos pessoais foram afetados e ameaçados, e claro, o equilíbrio. Barba (1994, p. 37) justifica:

A simples imaginação causada, ao pedir-lhes que imaginem que estão carregando um peso, correndo, caminhando, caindo ou saltando, produz uma modificação imediata de seus equilíbrios, ao passo que não o produz em outras pessoas, para as quais a imaginação se fixa no mundo das idéias sem conseqüências físicas perceptíveis.” Estamos tratando de uma mente dilatada e seus vazamentos para tessitura corporal.

            Quando ocorre esse vazamento das emoções ou da imaginação para a tessitura corporal, constatamos o quanto o ator esteve inteiro na sua busca interior por um corpo. O corpo traduz os conteúdos internos que são abstratos, e essa tradução se dá com a figuração de uma abstração também, se vê um desenho corporal que não se compara ao cotidiano, e daí é que surgem corpos preciosos para o trabalho atoral.

Existem metodologias, procedimentos e técnicas que se revelam como potentes ferramentas de construção corporal. Mas é válido sublinhar que

[...] a técnica é uma utilização particular do corpo. O nosso corpo é utilizado de maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas situações de representação. No contexto cotidiano, a técnica do corpo está condicionada pela cultura, pelo estado social e pelo ofício. Em uma situação de representação existe uma diferente técnica do corpo.
As técnicas cotidianas são muito mais funcionais quando não pensamos muito nelas. Por isso nos movemos, nos sentamos, carregamos peso, beijamos, indicamos, assentimos e negamos com gestos que acreditamos "naturais" e que, em vez disso, são determinados culturalmente. (BRABA, 1994, p. 30)

Em uma outra experiência tínhamos de reunir em duplas, fizemos uma espécie de jogo de marionete pelo espaço do laboratório de Artes Cênicas. Existia um “controlador”, este deveria segurar o parceiro com uma mão na região torácica e a outra nas costas, o parceiro deveria sentir-se leve-livre-solto para acompanhar os direcionamentos do controlador, que o levaria para um percurso, um passeio. Esse procedimento é caro para construção de um corpo extracotidiano, para um trabalho energético, para desenvolver a confiança entre os atores, e traz uma sensação de empoderamento de si, uma sensação de estar vivo sem esforçar-se para viver e ao mesmo tempo gozar do labor da vida. Ser levado, deixar-se levar, ao mesmo tempo estar em trabalho, uma linha tênue entre o cênico e a própria vida. Um estado de devir importante para que o cênico se instale, é como se estivéssemos nos abrindo para o porvir, o porvir é o mergulho em si mesmo com um olhar minucioso para estabelecer conexões e encontrar a essência do personagem na do ator.

[...] arte e vida se confundem: se as crianças aprendem brincando a assumir com verdade (com energia vital) os mais diferenciados papeis [...] e, intuitivamente, conseguem manipular tais configurações básicas de esforço rumo a qualquer objetivo a que se proponham, [...] o ator deverá também buscar, em si mesmo, os recursos ocultos, guardados em sua história de vida, para estabelecer, de fato, uma conexão de outra ordem, imaginária agora; para vitalizar e da cor ao seu papel.” (AZEVEDO, 2008, p. 188-1889)

Nos depoimentos dos alunos alguns citaram a semelhança das ações com as de possessão de entidades de culturas afro, e também notei isto. O corpo totalmente entregue, os olhos fechados, a quase ausência de expressão facial, uma elevação, quase uma ação espiritual. Utilizo esse procedimento como aquecimento antes do espetáculo Alice, justamente porque ele me traz a sensação de muito trabalho, acorda o corpo, ao mesmo tempo é libertador e deixa uma leveza como aura. Vale a pena eu pesquisar mais sobre esse exercício. Até porque, enquanto no primeiro exemplo meu corpo gritava ações, conteúdos internos, vozes, imagens, este outro me fez apenas sentir um não-estar de tanto que estive. Num repente, transcendi.

            Esse momento de êxtase é inerente ao processo de criação, e deve ser muito bem degustado para que o máximo de registros possam ficar impregnados na tessitura e na memória corporal, porque

Tudo, ao final, deverá ser fisicalizado, para que o esboço original adquira vida no palco.
É preciso que o ator descubra como estabelecer a passagem entre o que sua mente elaborou (visualizou, esboçou, organizou) e o que o seu corpo deve encarnar. O mundo da personagem terá de ser, todo ele, externado em ações claras, em atos relevantes de seu interior. (AZEVEDO, 2008, p. 191)

            Percebemos que o “campo das ideias de Platão” nos invade, contudo, é preciso pisar os pés no chão e administrar tantos conteúdos através do corpo. A presença cênica tão estudada por Eugênio Barba se dá pelo diálogo dentro-fora, pela mente dilatada que conseguintemente dilata o corpo. Não entregamos ao público um corpo vazio, perdido, a mercê de uma encenação, limitada a uma representação, condicionada a estereótipos, entregamos um corpo crível, de energia trocável, palpável, arrepiável. Muitos elementos tencionam para a excitabilidade energética de um corpo. Barba (1994, p. 42) fala sobre a oposição como um dos caminhos de tensão:

O corpo do ator revela a sua vida ao espectador em uma miríade de tensões de forças contrapostas. É o princípio da oposição. Em torno deste princípio-que-retoma, usado por todos os atores, ainda que algumas vezes de forma inconsciente, algumas tradições construíram elaborados sistemas de composição.”

            Desejo concluir esse artigo com a ideia de que, ao mesmo tempo em que quero um corpo ideal para aquele personagem, também quero um corpo inacabado. Como se eu jamais fosse encontrar o corpo e por isso necessitasse construí-lo sempre. Podemos encontrar um corpo e utilizá-lo, mas gosto de saber que posso “descoporificá-lo”, desconstruí-lo, desfragmentá-lo, diluí-lo. É uma ideia que me conforta, por saber que estou aberto às metamorfoses, e ao mesmo me desequilibra, porque o teatro é extremamente passageiro.

Finalizo com um poema que me invadiu ao começar a construir desse sucinto ensaio reflexivo sobre o corpo:

CONSTRÓI-SE CORPO
Allan Maykson

Eu quero um corpo invadido
Pelas vozes que possuem meu corpo;
Quero um corpo evadido de mim
Crível por mim
Executável em mim.
Eu quero ser um empréstimo
Um caminho e não o fim.
Eu quero ser o inacabado
O corpo precário
O gesto inteiro
O gesto unívoco
Mas que seja o gesto
A ponta da massa de gelo.
Eu quero um corpo presente
E outro ausente;
Um corpo gritante
Um corpo silente
Um corpo brando
E também o irreverente
E não quero um corpo simplesmente
Eu quero esboço
E grafias de alma
Quero ser o bom o moço
E o inferno da calma
O bêbado nojento
De vida pútrida e infame
Um corpo que pulsa
Que a mim mesmo me chame.
Um calabouço de corpo
Um labirinto de corpo
Um corpo insuficiente
Porém dilatado, simples e preciso.
Eu quero um corpo provisório
Efêmero e bem desenhado
E não quero um corpo que acabe
No inacabado...

04 de abril de 2017






_______________________________________________________________________

Notas
¹ Artigo sobre a disciplina CORPO III, do curso de Artes Cênicas da Univerdiade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e da CIA “Cômodos” de teatro.
³ Escritora, atriz e pesquisadora brasileira, autora do livro “O papel do corpo no corpo do ator”, umas bibliografias da disciplina de Corpo II do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha.
4 “Intrateatro: procedimentos Cênicos aplicados à Arteterapia” é meu projeto de IC da UVV (Universidade Vila Velha) em parceria com o Instituto Fênix de Ensino e pesquisa, no qual me especializo como Arteterapêuta. O projeto discorre sobre os princípios de Introversão e Extroversão da Psicologia Analítica de Jung em diálogo com teorias e procedimentos teatrais como potentes mecanismos terapêuticos.

Referências
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.


Nenhum comentário:

Postar um comentário