Allan Maykson Longui de Araújo²
"Jamais interprete, experimente"
(Gilles Deleuze)
Pensar
por imagens. Esta é a máxima apreendida na experiência das aulas de Corpo sob
minha ótica. Desenvolver a habilidade de pensar por imagens é abrir-se ao
universo interior particular e vasculhar imageticamente o que nos apresenta
como um material interno potente para a utilização nos procedimentos cênicos.
Chekhov (1996, p. 25) dá exemplos dessas
imagens insurgentes:
“[...]
em sua imaginação, surgem lentamente visões e fracassos de sua vida passada.
Desejos, devaneios, objetivos de vida, êxitos e fracassos, esquecidos e
vagarosamente recordados, aparecem como imagens em sua mente.”
Ilustrar os conteúdos que evocamos
internamente nos põe em contato com uma presença visível e audível, frutos da
nossa imaginação. Podemos encará-los como algo vivo, capaz de dar e receber respostas,
estímulos, ordens e afetos. “As imagens que vejo com o olho da mente têm sua
própria psicologia.” Consideramos que, observar as pessoas e suas ações
exteriores não me permite compreender um “quem”, seu caráter ou personalidade.
Isso não ocorre com nossas imagens, justamente porque são nossas, “a vida
interior delas está completamente aberta a minha contemplação.” (CHEKHOV, 1996, p. 30)
Quando
fazemos perguntas, ou ordenamos nossas imagens, orientamos e construímos
personagens que nos satisfaçam. Esse método de elaboração mostra-se plástico,
flexível, maleável, e sobretudo, intuitivo.
A
intuição é bastante solicitada, quando tratamos dos procedimentos cênicos. Não
é diferente em nossas práticas de Interpretação, nas quais experimentamos,
dentre outros processos relacionados ao universo imagético, a teoria dos Gestos Psicológicos, cujo
objetivo “é influenciar, instigar, moldar e sintonizar toda a sua vida interior
com seus fins e propósitos artísticos.” (CHEKHOV, 1996, p. 84)
Fiz uma releitura sobre a intuição
que oferece para ela a qualidade interlocutora entre ator e personagem, a linha
de comunicação que estabelece uma relação dialética e solidária, na qual eu
empresto meu corpo para que meu personagem aja.
É um dever do ator, desenvolver esse outro
sentido tão substancial para o seu trabalho, porque é com ele que criamos uma
zona de discernibilidade capaz de nos fazer sentir qual ou quais das imagens
que nos apresentam possuem a pulsão ideal para a ação.
As
imagens não surgirão prontas, acabadas e desenvolvidas, “para atingirem o grau
de expressividade que satisfaça o ator, elas exigirão sua colaboração ativa”, e
esta colaboração alcança um alto nível de expressividade quando mediada pela
intuição. (CHEKHOV, 1996, p. 27)
Spolin
(1979) nos assegura que a intuição está impregnada na natureza humana, portanto
todos conseguem alcançar o nível intuitivo de suas ações.
A intuição é sempre tida como sendo
uma dotação ou uma força mística possuída pelos privilegiados somente. No
entanto, todos nós tivemos momentos em que a resposta certa “simplesmente
surgiu do nada” ou “fizemos a coisa certa sem pensar”. Às vezes em momentos
como este, precipitados por uma crise, perigo ou choque, a pessoa “normal”
transcende os limites daquilo que é familiar, corajosamente entra na área do
desconhecido e libera por alguns minutos o gênio que tem dentro de si. Quando a
resposta a uma experiência se realiza no nível do intuitivo, quando a pessoa
trabalha além de um plano intelectual constrito, ela está realmente aberta para
aprender.
Percebemos
também que trabalhar num plano racional pode ser um elemento atrapalhador³
capaz de refletir numa figura ausente de energia, uma figura incoerente até. “O
raciocínio seco mata a imaginação.” A razão é censura para a imaginação. A
criatividade pura é um mundo inconcebível, não crível. É estranho, monstruoso e
pode ser deslumbrante, delirante e provocador do pensamento reflexivo e
inventivo, que são da natureza humana, a intuição se apresenta como uma via de
acesso às imagens genuinamente prontas para a construção de uma personagem.
(CHEKHOV, 1996, p. 29)
Em
um experimento em sala, a professora de Interpretação nos orientou a delinearmos
um palco individual, algo em torno de 40 cm x 40 cm. Deveríamos, então, pensar
uma ação de movimentos pequenos para executarmos em nosso palco. Foi um momento
em que eu não estava concentrado ou disposto para tal exercício, e a primeira
imagem que me veio foi de uma mulher na academia fazendo esteira. Ela nos pediu
que fizéssemos várias vezes o movimento, em velocidades diferentes, porém, não
consegui impregnar afeto no gesto, ele não me tocava internamente, foi
elaborado pura e simplesmente pela razão para executar o exercício, sem esforço
intuitivo ou afetivo, sem desejo. Era apenas um gesto, não uma ação-física,
preenchida internamente, como estudamos em Stanislavski.
Essa
falta de ligamento, de contato com a ação me despertou um incômodo e uma
sensação de vazio que diluía meus pensamentos a despeito da aula. Mas o que
pensamos escorre para outras vias do nosso complexo corpo, utilizei essas
sensações que me incomodavam como elemento de movimento interno, pensamentos
que não param, uma ação ininterrupta de falas internas e as imagens de uma mulher correndo numa
esteira, que evocavam uma pulsão que
perpassava a tessitura do corpo e me invadia. Toda essa energia excitada se
presentificou no exercício de andar pelo espaço até um ponto fixo com andar
firme e presença cênica.
Eu
estava deliberando tais conteúdos (falas internas e imagens) para um andar de
raiva, esses que não me serviram na proposição anterior. Percebemos o quanto os
estímulos são deslocáveis, móveis, flexíveis e díspares, se transferidos para a
ação correta ou para a ação que necessite desse tipo de referencial imagético
pulsante, capaz de desenhar o nosso corpo conforma a vontade que surge.
“Com
efeito, no processo de incorporação de imagens e bem elaboradas você molda seu
corpo desde dentro, por assim dizer, e impregna0o literalmente de sentimentos,
emoções e impulsos volitivos artísticos. Assim, o corpo torna-se cada vez mais
a “membrana sensível” previamente descrita. (CHEKHOV, 1996, p. 39-40)
Concordando
com Chekhov, eu também diria sobre a característica de inconstância, ou melhor,
um estado de inconstância desse processo de incorporação de imagens, que incute
em nosso corpo uma volúvel expressão rasurada e incoerente até que se encontre
a ou as imagens que favoreça ao nosso personagem. É uma aflição que nos coloca em estado de alerta e uma
pesquisa em cena. Esses fenômenos tão recorrentes nas aulas de Interpretação
sempre me levam a pensar a respeito do desconforto, este que aprendi a aceitar.
Aprendi nos estudos de Bogart (2011, p. 118) que
O
desconforto é um mestre. O bom ator corre o risco de se sentir desconfortável o
tempo todo. Não há nada mais emocionante do que ensaiar com um ator que está
disposto a pisar em território desconfortável. A insegurança mantém as linhas
tensas. Se você tenta evitar sentir-se desconfortável com o que faz, não vai
acontecer nada, porque o território permanece seguro e não é exposto. O
desconforto gera brilho, realça a personalidade e desfaz a rotina.
Preciso
sublinhar que, o desconforto maior estava em não desenvolver um bom desempenho
para a mediadora do processo. Era uma aflição, até que em diálogo com uma
colega de turma e talentosa atriz, Sami Gotto, percebemos o quanto não
estávamos mostrando nosso potencial por medo de sermos avaliados. Nosso
discurso foi muito parecido: não estou me sentindo inteiro. Mas optamos por
enfrentar o mal do medo de ser avaliado e resolvemos revisitar o nosso
potencial tão apagado. Errar, então, se tornou um momento de contemplação de
mim mesmo. Foi preciso. A partir do momento em que aceitei que “o desconforto é
um mestre”, me permiti crescer.
Certa
vez a professora mencionou sobre o “ensaio mental” na aula. Como nada fica à
margem na minha cabeça, comecei a indagar sobre o que seria isso. Seria passar
as falas da personagem mentalmente? Seria imaginar suas ações? Um dos primeiros materiais cênicos que
aprendemos no curso foi a Visualização, conceituando de modo empírico, consiste
em construir mentalmente a presença física do objeto com o qual se deseja
interagir. O meu ensaio mental da cena 5 “Você é feia” fiz a partir das fontes
da visualização. Eu estava inseguro quanto ao texto ainda, enquanto meus
colegas apresentavam suas cenas e eram dirigidos, me concentrei em me
visualizar e visualizar meus colegas de cena no palco da Sala de Dança. À
medida que eu visualizava a cena acontecendo eu passava as falas, inicialmente
lendo o texto, depois eu fazia o mesmo processo de visualização sem consultar o
texto, e mentalmente eu internalizava o que visualizei juntamente com o texto,
na hora de apresentar o recorte, percebi que o procedimento foi muito positivo,
porque consegui memorizar o texto e as ações visualizadas ficaram como resíduo
e claro, foram dirigidas para aprimorá-las. Desde então, meu ensaio mental é
feito desta forma, a partir da visualização de mim mesmo e meus parceiros no
palco.
As
ações corporais da cena foram previamente estabelecidas pela pesquisa de
gestos, para então colocarmos o texto, contudo, o GP da personagem Tia Rute
surgiu em cena, quando ela se jogava no chão e ali se arrastava expressando seu
ódio e inveja porque nunca era lembrada, mas seu irmão sim: “Mamãe o quê... (mudando de tom) Ela não
gostou nunca de mim. Tudo era você” 4.
“Ela
não gostou nunca de mim” foi pulsional e se enquadrou no arranjo do GP da Tia
Rute. O ato de jogar-se se enquadra no GP arquetípico da personagem, mais uma
vez presenciei a teoria se aplicando. Vejamos:
“Existem
duas espécies de gestos. Uma que usamos tanto quando atuamos no palco como na
vida cotidiana: os gestos naturais e usuais. A outra espécie consiste no que
poderíamos chamar de gestos arquetípicos, aqueles que servem como modelo
original para todos os gestos possíveis da mesma espécie. O GP pertence ao
segundo tipo. Os gestos cotidianos são incapazes de instigar nossa vontade
porque são excessivamente limitados, fracos demais e particularizados. Não
ocupam todo o espaço do nosso corpo, psicologia e alma, ao passo que o GP, como
arquétipo, apossa-se deles inteiramente.”
(CHEKHOV, 1996, p. 88)
Enxergo os dois elementos supracitados (ação e
fala) como o ápice da personagem. Mas também não posso deixar de refletir a
respeito do porquê disto. Qual a relação o meu eu tem com esse “não eu-meu”? A
minha experiência familiar me responde isto, era como me senti depois que minha
irmã nasceu, por isso a identificação com o papel, e por isso esta fala. Era a
maior parte de mim presente na personagem, expressão do meu ego. E isso é
potente para a ação:
“O profundamente
escondido e, hoje em dia, quase completamente esquecido desejo de todo
verdadeiro ator é expressar-se, afirmar seus próprio ego, por intermédio de
seus papeis.” (CHEKHOV, 1996, p. 32)
Mas Chekhov (1996, p. 39) é muito
feliz quando nos aconselha a nos aprofundar em doses homeopáticas nessa vida
interior de nossos personagens. É uma recomendação bastante madura e que faz
todo sentido, uma vez que, dependendo dos conteúdos pessoais que nos invadem, podemos
não ter estrutura para elaborar o desejo de nosso personagem:
Quando
trabalha desse modo a personagem que irá interpretar no palco, você pode, para
começar escolher apenas uma característica dentre todas as que se apresentam a
sua visão interior. Assim fazendo, você nunca conhecerá o choque (que atores
conhecem bem demais!) resultante da tentativa de incorporar a imagem toda de
uma só vez, num ávido trago.
É
uma expressão de muito bom senso, porque permite certo controle ou diminui os
efeitos relacionados às perturbações e o choque de quanto vislumbramos todas as
caraterísticas de uma vez só. É avassalador quando somos invadidos por nós
mesmos e perdemos o controla do avalanche. Quisera eu ter pensado nisso antes,
no processo gradual, para habilitar meus meios de expressão a processarem
tantos conteúdos em outras construções cênicas. Certamente este é mais um dos
aprendizados mais valiosos para o meu trabalho enquanto ator.
Quando
entendemos o potencial dos GP’s conseguimos gestar, gerir e administrar com a
mesma potência os nossos personagens. Damos vida, ritmo e singularidade para as
nossas criações. Chekhov (1996, p. 90) nos ensina que
“O GP
deve permanecer sempre forte, e a fraqueza deve ser encarada como sua
qualidade. Assim, o vigor psicológico do GP pouco sofrerá, seja ele apresentado
com brandura, ternura, afeto, amor ou mesmo com qualidades como preguiça ou
cansaço, combinados com fraqueza. Além disso é o ator e não a personagem, que
conduz um GP forte, e é a personagem, e não o ator, que é indolente, cansada e
fraca.”
“[...]
o GP deve ser tão simples quanto
possível, porque sua tarefa consiste e, resumir a intricada psicologia de uma
personagem de forma facilmente verificável, em comprimí-la em sua essência.”
“O GP
deve ainda ter uma forma muito clara e definida. Qualquer imprecisão nele
existente deve provar ao ator que ainda não é na essência, no cerne da
psicologia da personagem que ele está trabalhando.”
Por
fim, apreender um personagem, gestá-lo, por meio da imagem se revela a mim como
uma possibilidade eficaz de dar voz aos múltiplos símbolos que nos aparecem. O
tempo todo estamos simbolizando. Simbolizamos sentimentos, afetos, tudo que não
podemos tocar, o que não é palpável, tendemos a abstrair. No corpo cabe essa
expressão vívida de nossas imagens, com ele conseguimos encontrar palavras para
essas invasões, e a intepretação é o espaço que compreende o confluência desses
elementos todos.
Certa
vez, numa palestra sobre educação, quando eu ainda estudava a Licenciatura em
Pedagogia, a palestrante e simpática Augusta Bicalho nos apresentou o termo
“auscultar”, e sobre ela divagou, cada vez que ela desavessava sobre a palavra
em seu discurso, eu absorvia aquele momento de sabedoria.
Auscultar
está para além de escutar, é buscar saber, aprofundar-se nos ruídos, no
não-dito, no oculto, porém expresso nos olhos. É saber ouvir as entrelinhas, as
“entrevozes”, os “entrecorpos”, os pormenores, os detalhes sórdidos da vida.
Percebo que o trabalho proposto por Chekhov nada mais é que auscultar o
personagem, auscultar a si mesmo. Ascultar-se-me.
Notas
¹ Artigo
sobre a disciplina PRÁTICA EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL II, do curso de Artes
Cênicas da Universidade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms.
Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia
e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela
Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em
Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente,
Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do
grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto
“Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de
pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”.
Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como
docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como
professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É
membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e
da CIA “Cômodos” de teatro.
³ O “elemento
atrapalhador” tem a função atrapalhar o arranjo, seja com conteúdos internos
que insurgem, seja com conteúdos externos que não estavam previamente
enquadrados. Esse termo está sendo desenvolvido pela Prof. Dra. Rejane K.
Arruda na pesquisa “Efeitos de realidade (e alucinação): uma investigação da
atuação realista através do dispositivo cênico-cinematográfico”, e também foi
discorrida no projeto de pesquisa de Fagner Soares, ex-aluno das Artes Cênicas da Universidade
Vila Velha, intitulada“ Fala interna como raiz e suas ramificações primárias e
secundárias”.
4 Fragmento de “Álbum
de Família, de Nelson Rodrigues, 1945.
Referências Bibliográficas
BOGART,
Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e
teatro. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011.
CHEKHOV,
Michael. Para o Ator. Tradução de
Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SPOLIN, Viola.
Improvisação para o teatro. São Paulo: Pespectiva, 1979.
Nenhum comentário:
Postar um comentário