segunda-feira, 24 de abril de 2017

INTERPRETAÇÃO: UM LUGAR DE CONFLUÊNCIAS¹


Allan Maykson Longui de Araújo²
"Jamais interprete, experimente" (Gilles Deleuze)

Pensar por imagens. Esta é a máxima apreendida na experiência das aulas de Corpo sob minha ótica. Desenvolver a habilidade de pensar por imagens é abrir-se ao universo interior particular e vasculhar imageticamente o que nos apresenta como um material interno potente para a utilização nos procedimentos cênicos.
       Chekhov (1996, p. 25) dá exemplos dessas imagens insurgentes:
“[...] em sua imaginação, surgem lentamente visões e fracassos de sua vida passada. Desejos, devaneios, objetivos de vida, êxitos e fracassos, esquecidos e vagarosamente recordados, aparecem como imagens em sua mente.”
            Ilustrar os conteúdos que evocamos internamente nos põe em contato com uma presença visível e audível, frutos da nossa imaginação. Podemos encará-los como algo vivo, capaz de dar e receber respostas, estímulos, ordens e afetos. “As imagens que vejo com o olho da mente têm sua própria psicologia.” Consideramos que, observar as pessoas e suas ações exteriores não me permite compreender um “quem”, seu caráter ou personalidade. Isso não ocorre com nossas imagens, justamente porque são nossas, “a vida interior delas está completamente aberta a minha contemplação.”  (CHEKHOV, 1996, p. 30)
Quando fazemos perguntas, ou ordenamos nossas imagens, orientamos e construímos personagens que nos satisfaçam. Esse método de elaboração mostra-se plástico, flexível, maleável, e sobretudo, intuitivo.
A intuição é bastante solicitada, quando tratamos dos procedimentos cênicos. Não é diferente em nossas práticas de Interpretação, nas quais experimentamos, dentre outros processos relacionados ao universo imagético,  a teoria dos Gestos Psicológicos, cujo objetivo “é influenciar, instigar, moldar e sintonizar toda a sua vida interior com seus fins e propósitos artísticos.” (CHEKHOV, 1996, p. 84)
            Fiz uma releitura sobre a intuição que oferece para ela a qualidade interlocutora entre ator e personagem, a linha de comunicação que estabelece uma relação dialética e solidária, na qual eu empresto meu corpo para que meu personagem aja.
 É um dever do ator, desenvolver esse outro sentido tão substancial para o seu trabalho, porque é com ele que criamos uma zona de discernibilidade capaz de nos fazer sentir qual ou quais das imagens que nos apresentam possuem a pulsão ideal para a ação.
As imagens não surgirão prontas, acabadas e desenvolvidas, “para atingirem o grau de expressividade que satisfaça o ator, elas exigirão sua colaboração ativa”, e esta colaboração alcança um alto nível de expressividade quando mediada pela intuição. (CHEKHOV, 1996, p. 27)
Spolin (1979) nos assegura que a intuição está impregnada na natureza humana, portanto todos conseguem alcançar o nível intuitivo de suas ações.
A intuição é sempre tida como sendo uma dotação ou uma força mística possuída pelos privilegiados somente. No entanto, todos nós tivemos momentos em que a resposta certa “simplesmente surgiu do nada” ou “fizemos a coisa certa sem pensar”. Às vezes em momentos como este, precipitados por uma crise, perigo ou choque, a pessoa “normal” transcende os limites daquilo que é familiar, corajosamente entra na área do desconhecido e libera por alguns minutos o gênio que tem dentro de si. Quando a resposta a uma experiência se realiza no nível do intuitivo, quando a pessoa trabalha além de um plano intelectual constrito, ela está realmente aberta para aprender.
Percebemos também que trabalhar num plano racional pode ser um elemento atrapalhador³ capaz de refletir numa figura ausente de energia, uma figura incoerente até. “O raciocínio seco mata a imaginação.” A razão é censura para a imaginação. A criatividade pura é um mundo inconcebível, não crível. É estranho, monstruoso e pode ser deslumbrante, delirante e provocador do pensamento reflexivo e inventivo, que são da natureza humana, a intuição se apresenta como uma via de acesso às imagens genuinamente prontas para a construção de uma personagem. (CHEKHOV, 1996, p. 29)
Em um experimento em sala, a professora de Interpretação nos orientou a delinearmos um palco individual, algo em torno de 40 cm x 40 cm. Deveríamos, então, pensar uma ação de movimentos pequenos para executarmos em nosso palco. Foi um momento em que eu não estava concentrado ou disposto para tal exercício, e a primeira imagem que me veio foi de uma mulher na academia fazendo esteira. Ela nos pediu que fizéssemos várias vezes o movimento, em velocidades diferentes, porém, não consegui impregnar afeto no gesto, ele não me tocava internamente, foi elaborado pura e simplesmente pela razão para executar o exercício, sem esforço intuitivo ou afetivo, sem desejo. Era apenas um gesto, não uma ação-física, preenchida internamente, como estudamos em Stanislavski.
Essa falta de ligamento, de contato com a ação me despertou um incômodo e uma sensação de vazio que diluía meus pensamentos a despeito da aula. Mas o que pensamos escorre para outras vias do nosso complexo corpo, utilizei essas sensações que me incomodavam como elemento de movimento interno, pensamentos que não param, uma ação ininterrupta de falas internas  e as imagens de uma mulher correndo numa esteira,  que evocavam uma pulsão que perpassava a tessitura do corpo e me invadia. Toda essa energia excitada se presentificou no exercício de andar pelo espaço até um ponto fixo com andar firme e presença cênica.
Eu estava deliberando tais conteúdos (falas internas e imagens) para um andar de raiva, esses que não me serviram na proposição anterior. Percebemos o quanto os estímulos são deslocáveis, móveis, flexíveis e díspares, se transferidos para a ação correta ou para a ação que necessite desse tipo de referencial imagético pulsante, capaz de desenhar o nosso corpo conforma a vontade que surge.
“Com efeito, no processo de incorporação de imagens e bem elaboradas você molda seu corpo desde dentro, por assim dizer, e impregna0o literalmente de sentimentos, emoções e impulsos volitivos artísticos. Assim, o corpo torna-se cada vez mais a “membrana sensível” previamente descrita. (CHEKHOV, 1996, p. 39-40)
Concordando com Chekhov, eu também diria sobre a característica de inconstância, ou melhor, um estado de inconstância desse processo de incorporação de imagens, que incute em nosso corpo uma volúvel expressão rasurada e incoerente até que se encontre a ou as imagens que favoreça ao nosso personagem. É uma aflição que nos coloca em estado de alerta e uma pesquisa em cena. Esses fenômenos tão recorrentes nas aulas de Interpretação sempre me levam a pensar a respeito do desconforto, este que aprendi a aceitar. Aprendi nos estudos de Bogart (2011, p. 118) que
O desconforto é um mestre. O bom ator corre o risco de se sentir desconfortável o tempo todo. Não há nada mais emocionante do que ensaiar com um ator que está disposto a pisar em território desconfortável. A insegurança mantém as linhas tensas. Se você tenta evitar sentir-se desconfortável com o que faz, não vai acontecer nada, porque o território permanece seguro e não é exposto. O desconforto gera brilho, realça a personalidade e desfaz a rotina.

Preciso sublinhar que, o desconforto maior estava em não desenvolver um bom desempenho para a mediadora do processo. Era uma aflição, até que em diálogo com uma colega de turma e talentosa atriz, Sami Gotto, percebemos o quanto não estávamos mostrando nosso potencial por medo de sermos avaliados. Nosso discurso foi muito parecido: não estou me sentindo inteiro. Mas optamos por enfrentar o mal do medo de ser avaliado e resolvemos revisitar o nosso potencial tão apagado. Errar, então, se tornou um momento de contemplação de mim mesmo. Foi preciso. A partir do momento em que aceitei que “o desconforto é um mestre”, me permiti crescer.
Certa vez a professora mencionou sobre o “ensaio mental” na aula. Como nada fica à margem na minha cabeça, comecei a indagar sobre o que seria isso. Seria passar as falas da personagem mentalmente? Seria imaginar suas ações?  Um dos primeiros materiais cênicos que aprendemos no curso foi a Visualização, conceituando de modo empírico, consiste em construir mentalmente a presença física do objeto com o qual se deseja interagir. O meu ensaio mental da cena 5 “Você é feia” fiz a partir das fontes da visualização. Eu estava inseguro quanto ao texto ainda, enquanto meus colegas apresentavam suas cenas e eram dirigidos, me concentrei em me visualizar e visualizar meus colegas de cena no palco da Sala de Dança. À medida que eu visualizava a cena acontecendo eu passava as falas, inicialmente lendo o texto, depois eu fazia o mesmo processo de visualização sem consultar o texto, e mentalmente eu internalizava o que visualizei juntamente com o texto, na hora de apresentar o recorte, percebi que o procedimento foi muito positivo, porque consegui memorizar o texto e as ações visualizadas ficaram como resíduo e claro, foram dirigidas para aprimorá-las. Desde então, meu ensaio mental é feito desta forma, a partir da visualização de mim mesmo e meus parceiros no palco.
As ações corporais da cena foram previamente estabelecidas pela pesquisa de gestos, para então colocarmos o texto, contudo, o GP da personagem Tia Rute surgiu em cena, quando ela se jogava no chão e ali se arrastava expressando seu ódio e inveja porque nunca era lembrada, mas seu irmão sim: “Mamãe o quê... (mudando de tom) Ela não gostou nunca de mim. Tudo era você” 4.
“Ela não gostou nunca de mim” foi pulsional e se enquadrou no arranjo do GP da Tia Rute. O ato de jogar-se se enquadra no GP arquetípico da personagem, mais uma vez presenciei a teoria se aplicando. Vejamos:
“Existem duas espécies de gestos. Uma que usamos tanto quando atuamos no palco como na vida cotidiana: os gestos naturais e usuais. A outra espécie consiste no que poderíamos chamar de gestos arquetípicos, aqueles que servem como modelo original para todos os gestos possíveis da mesma espécie. O GP pertence ao segundo tipo. Os gestos cotidianos são incapazes de instigar nossa vontade porque são excessivamente limitados, fracos demais e particularizados. Não ocupam todo o espaço do nosso corpo, psicologia e alma, ao passo que o GP, como arquétipo, apossa-se deles inteiramente.” (CHEKHOV, 1996, p. 88)
 Enxergo os dois elementos supracitados (ação e fala) como o ápice da personagem. Mas também não posso deixar de refletir a respeito do porquê disto. Qual a relação o meu eu tem com esse “não eu-meu”? A minha experiência familiar me responde isto, era como me senti depois que minha irmã nasceu, por isso a identificação com o papel, e por isso esta fala. Era a maior parte de mim presente na personagem, expressão do meu ego. E isso é potente para a ação:
“O profundamente escondido e, hoje em dia, quase completamente esquecido desejo de todo verdadeiro ator é expressar-se, afirmar seus próprio ego, por intermédio de seus papeis.” (CHEKHOV, 1996, p. 32)
            Mas Chekhov (1996, p. 39) é muito feliz quando nos aconselha a nos aprofundar em doses homeopáticas nessa vida interior de nossos personagens. É uma recomendação bastante madura e que faz todo sentido, uma vez que, dependendo dos conteúdos pessoais que nos invadem, podemos não ter estrutura para elaborar o desejo de nosso personagem:
Quando trabalha desse modo a personagem que irá interpretar no palco, você pode, para começar escolher apenas uma característica dentre todas as que se apresentam a sua visão interior. Assim fazendo, você nunca conhecerá o choque (que atores conhecem bem demais!) resultante da tentativa de incorporar a imagem toda de uma só vez, num ávido trago.
É uma expressão de muito bom senso, porque permite certo controle ou diminui os efeitos relacionados às perturbações e o choque de quanto vislumbramos todas as caraterísticas de uma vez só. É avassalador quando somos invadidos por nós mesmos e perdemos o controla do avalanche. Quisera eu ter pensado nisso antes, no processo gradual, para habilitar meus meios de expressão a processarem tantos conteúdos em outras construções cênicas. Certamente este é mais um dos aprendizados mais valiosos para o meu trabalho enquanto ator.
Quando entendemos o potencial dos GP’s conseguimos gestar, gerir e administrar com a mesma potência os nossos personagens. Damos vida, ritmo e singularidade para as nossas criações. Chekhov (1996, p. 90) nos ensina que
“O GP deve permanecer sempre forte, e a fraqueza deve ser encarada como sua qualidade. Assim, o vigor psicológico do GP pouco sofrerá, seja ele apresentado com brandura, ternura, afeto, amor ou mesmo com qualidades como preguiça ou cansaço, combinados com fraqueza. Além disso é o ator e não a personagem, que conduz um GP forte, e é a personagem, e não o ator, que é indolente, cansada e fraca.”
“[...] o GP deve ser tão simples quanto possível, porque sua tarefa consiste e, resumir a intricada psicologia de uma personagem de forma facilmente verificável, em comprimí-la em sua essência.”
“O GP deve ainda ter uma forma muito clara e definida. Qualquer imprecisão nele existente deve provar ao ator que ainda não é na essência, no cerne da psicologia da personagem que ele está trabalhando.”
Por fim, apreender um personagem, gestá-lo, por meio da imagem se revela a mim como uma possibilidade eficaz de dar voz aos múltiplos símbolos que nos aparecem. O tempo todo estamos simbolizando. Simbolizamos sentimentos, afetos, tudo que não podemos tocar, o que não é palpável, tendemos a abstrair. No corpo cabe essa expressão vívida de nossas imagens, com ele conseguimos encontrar palavras para essas invasões, e a intepretação é o espaço que compreende o confluência desses elementos todos.
Certa vez, numa palestra sobre educação, quando eu ainda estudava a Licenciatura em Pedagogia, a palestrante e simpática Augusta Bicalho nos apresentou o termo “auscultar”, e sobre ela divagou, cada vez que ela desavessava sobre a palavra em seu discurso, eu absorvia aquele momento de sabedoria.
Auscultar está para além de escutar, é buscar saber, aprofundar-se nos ruídos, no não-dito, no oculto, porém expresso nos olhos. É saber ouvir as entrelinhas, as “entrevozes”, os “entrecorpos”, os pormenores, os detalhes sórdidos da vida. Percebo que o trabalho proposto por Chekhov nada mais é que auscultar o personagem, auscultar a si mesmo. Ascultar-se-me.


Notas
¹ Artigo sobre a disciplina PRÁTICA EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL II, do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, da turma ACN3, ministrada pela Prof. Ms. Lara Couto.
² Graduado em Pedagogia e especialista em Competências Docentes com Ênfase no Ensino Superior pela Faculdade Pitágoras - Campus Linhares (ES). Atualmente estuda pós-graduação em Arteterapia pelo Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa e, concomitantemente, Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea", com seu projeto “Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia” sob a linha de pesquisa “A Poética Cênica, Seus Dispositivos e Estratégias de Transmissão”. Possui experiência profissional em cursos de pós-graduação e graduação como docente convidado e substituo, e em todos os níveis da educação básica como professor, coordenador de cursos preparatórios e coordenador geral. É membro-fundador da dupla Meninice de música, poesia e contação de histórias e da CIA “Cômodos” de teatro.
³ O “elemento atrapalhador” tem a função atrapalhar o arranjo, seja com conteúdos internos que insurgem, seja com conteúdos externos que não estavam previamente enquadrados. Esse termo está sendo desenvolvido pela Prof. Dra. Rejane K. Arruda na pesquisa “Efeitos de realidade (e alucinação): uma investigação da atuação realista através do dispositivo cênico-cinematográfico”, e também foi discorrida no projeto de pesquisa de Fagner Soares,  ex-aluno das Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, intitulada“ Fala interna como raiz e suas ramificações primárias e secundárias”.
4 Fragmento de “Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, 1945.

Referências Bibliográficas
BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011.

CHEKHOV, Michael. Para o Ator. Tradução de Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Pespectiva, 1979.


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