domingo, 25 de setembro de 2016

ÊNFASE EM JOGOS TEATRAIS II: JOGOS TRADICIONAIS: UM TREINAMENTO ENERGÉTICO?

"Luís Otávio Burnier, criador do LUME, embasado nas pesquisas de Grotowski, acreditava que a exaustão física poderia ser uma porta de entrada para essas energias potenciais, pois, em estado de limite de exaustão, as defesas psíquicas tornam-se mais maleáveis." 

(FERRACINI, Renato, 2012, p. 95)


Para a montagem de "Alice no País das Maravilhas", nos foi apresentado um método de criação de cenas a partir de jogos tradicionais, aqueles de nossa infância, os piques e os jogos de campo, esses que são raros vermos por aí nas ruas da cidade, mas que, para quem teve a oportunidade de vivenciar isso, ao fazê-lo novamente, agora adulto, traz consigo uma carga afetiva, uma energia emocional criativa tão presente e genuína na infância. Esses jogos e brincadeiras têm sido nosso aquecimento nas aulas de Jogos Teatrais, com o objetivo de absorver ações para o rascunho de cenas do espetáculo. 

        No semestre passado, nosso aquecimento ou em Ferracini (2012), o Treinamento Energético, fazíamos ações incansáveis de furar o ar, empurrar o ar, deslizar no ar, largar e pegar, etc. Era um treinamento exaustivo, com o objetivo de trocar as energias, "limpar" o corpo e "encontrar um novo fluxo energético". 

         Percebi com isso que, tanto os procedimentos do semestre passado quanto o deste semestre (jogos e brincadeiras) promovem a exaustão, o esgotamento e colocam o ator em outro estado mental, intrínseco ao processo que se deseja construir, nesse caso, a Alice. 

          Rememorando minhas leituras sobre o Treinamento Enérgico afim de fazer um alicerce para a utilização dos Jogos e Brincadeiras Tradicionais como treinamento energético, encontrei alguns escritos que podem gerar uma discussão acadêmica sobre o assunto. Ferracini (2012, p. 96) pontua que 

"O treinamento energético quase não possui regras formais. Os movimentos podem, e devem, ser aleatórios, grandes, ocupando todo o espaço da sala e sempre devem ser realizados de maneira extremamente dinâmica, englobando todo o corpo e principalmente a coluna vertebral. A única regra primordial: nunca parar. Pode-se, e deve-se, sempre, variar a intensidade, o ritmo, os níveis, a fluidez, a força muscular, enfim, toda a dinâmica das ações, mas nunca parar. Parando, quebra-se o “fio” condutor e desperdiça-se toda a energia trabalhada até aquele momento." 

       Quando lemos que "O treinamento energético quase não possui regras formais", podemos afirmar que esse treinamento é dinâmico, flexível e passível de diversas alterações, podemos inferir a inclusão de novos movimentos e aleatórios, basicamente, cada mediador pode elaborar o seu próprio treinamento energético, nesse sentido, os Jogos podem se enquadrar como uma das vertentes desse procedimento. 

       Porém, uma questão me invade desde quando comecei a pensar a esse respeito: o Jogo é uma estrutura formal, possui regras, possui ações cotidianas, possui comunicação verbal, é conscientemente construído e elaborado, precisa da razão o tempo todo para pensar em estratégias. Já o treinamento energético é caracterizado pela variação de fisicalidade, pela dinâmica corpórea, as "mudanças não devem ser premeditadas intelectualmente. O ator deve deixar que o próprio corpo se encarregue delas", "A voz deve ser usada com parcimônia e somente em momentos precisos e definidos pelo coordenador do trabalho. Considerando as características supracitadas, aos Jogos Tradicionais, apesar de promover "a troca e a comunicação corpórea e energética entre os participantes, como uma forma de “ajuda” e “alimento”, superando, assim, as dificuldades e a exaustão (idem, p. 96), pode-se atribuir o valor  de Treinamento Energético? 

       No semestre passado, as ações do nosso treinamento se tornaram repertório de performances e pequenas apresentações que fazíamos em sala, desses Jogos Tradicionais também importamos diversas ações para as cenas de Alice, eles colocam nosso corpo e mente engajados no processo de criação, seria uma espécie de um coro-circunstanciado¹, no qual não estamos jogando na rua com amigos com o objetivo de passar tempo, estamos jogando na escola com amigos com o objetivo de nos divertir e extrair cenas ou fragmentos delas posteriormente. 

       Talvez, os jogos não se enquadrem no Treinamento Energético, mas podem ter a visualidade de aquecimento e também de Pré-expressividade, como estudamos em Barba, que não aparece em cena. A pré-expressividade é residual, é sujeira, é uma decomposição² impregnada nas paredes da memória corporal. 

      Apesar de eu ter me convencido, neste decurso, que os jogos e brincadeiras não se caracterizam como um treinamento energético, devo fazer uma consideração. Já que este treinamento é basicamente plástico por causa da variação de fisicalidades e das diversas ações físicas, é possível extrair ações dos jogos tradicionais e importá-los para o treinamento energético. Essa proposta pode ser válida e muito feliz pelo fato de os jogos trazerem uma energia especial e não cotidiana, promovendo essa troca orgânica, essa limpeza, já carregada de afetos que podem tomar conta do corpo do ator, favorecendo a presença cênica, a verdade em suas ações físicas, a intensidade, a plasticidade, não só orientadas ou originadas pela exaustão, mas pelos materiais que promovem a movimentação interna de um conteúdo autobiográfico. 

         Por fim, Ferracini (2012, p. 99) aponta que 
O Energético “...quebra um sistema preestabelecido de ações, encaminhando o corpo para um outro sistema totalmente desconhecido. Assim passamos a adquirir no corpo, novas maneiras de “se estar” em vida”. (Ana Elvira Wuo, entrevista, 1997). 

      Por essas e outras razões que a importação de figuras, ações e expressões que surgiram nos jogos se mostra uma proposta de criação genuína pelas duas vias, pela proposição em si e pela criação dos atores que trazem o que lhes pertencem e o que lhes tem possui valor. A construção de Alice mostra rica e única por estar se realizando através de um coro de materiais internos e externos de um coletivo. Assim, nós temos as nossas flores, temos os nossos guardas, temos as nossas rainhas, temos a nossa Duquesa e muitos outros personagens que se fizeram a partir de recortes dos jogos tradicionais. 

       A nossa Alice vai ser nossa! 


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Notas 


¹ Termo que surgiu na escrita deste discurso. Faz referência a um coletivo de atores situadas num espaço-tempo, num contexto diegético de personagem, tal qual o Eu-circunstanciado de Stanislavski. 

² Mais um termo que surgiu desta construção. Podemos chamar de decomposição todo aquele material interno que já foi utilizado. Em diversos momentos precisamos fazer resgates de materiais, o material à ser resgatado está decomposto, porque ficou adormecido ou não estimulado na memória e até mesmo no nosso inconsciente. O material que é esquecido não é um material excluído de nós, mas é um material decomposto em nós, como num processo de putrefação orgânica, no qual o corpo torna-se parte da terra, assim são os materiais, tornam-se parte de todo o nosso corpo, reaparecendo em fragmentos ou em lapsos imperceptíveis de afetos. 


Referências Bibliográficas

FERRACINI, Renato. O Treinamento Energético e Técnico do Ator. Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, 2012.

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