domingo, 18 de setembro de 2016

ÊNFASE EM INTERPRETAÇÃO: O NÃO EU MEU

"Ele se trans-figura, transpõe, se exalta, transcria e até se deforma ou paralisa. Às vezes histeriza."


Bya Braga

O último texto que debatemos, na aula de jogos, "Ator de prova: questões para uma ação-física coral", de Bya Braga, me trouxe algumas inquietudes entremeadas de encantamentos, cabendo neste discurso a exposição de algumas ideias que reverberaram inclusive na composição do figurino dos meus personagens em Alice no País das Maravilhas: Duquesa, Dodô e Alice Dark (Narradora). 

       Eu não tive nenhuma referência audiovisual da Duquesa que não a minha própria construção na composição da minha subpartitura¹. Ao mesmo tempo que me vi num processo  criativo genuinamente cru - e foi uma visão de afetos positivos - me vi à beira de um alvo de erros do que realmente seria esta personagem em Alice, contudo, Rejane, nossa professora (também) de interpretação (também) sempre fez questão de pontuar que nosso interesse não é a Alice de Lawis Caroll, mas que o texto faz parte da composição de materiais que estamos construindo. 

       Pelo motivo de a Duquesa ter sido esse desafio, e também por ela ir de encontro, talvez, com minhas sombras - tal identificação também se encontra na ironia da Alice Dark - me apeguei à personagem e tenho me dedicado substancialmente na sua construção que não se fecha, não se conclui e me encontro no lindo desafio de redescobrir a Duquesa cada vez que paro para encená-la. É lindo. Não por falta de provas: 



       Vejamos a primeira vez em que a Duquesa ensaia sua partitura: 



      Quando estava lendo o preciosíssimo texto de Bya Braga e me debulhando naquela narrativa cheia de cortes, devaneios, fragmentos e provocações, o trecho que destaquei logo no início desta descrição, me moveu a uma mudança radical do figurino da Duquesa. Oras, eu quero experimentar essa trans-figuração, essa  transposição, essa exaltação, transcriação, essa deformação, essa histerilização, e eu quis começar pelo figurino, tive um insight que me invadiu, e ansiosamente fui para a aula de figurino rascunhar o que vestiria a nova Duquesa. Uma pena eu não ter meu primeiro esboço. Mas compartilho como vai ser agora: 


      Após quase concluir o desenho, me lembrei de uma forte referência, a Mortícia Adamsn. Foi perfeito! 


          E para concluir minha lógica, a maquiagem será esta obra de arte que saiu das mãos de Paulo Henrique, nosso colega de sala: 



       Não devo me aprofundar no figurino nesta postagem, mas para ficar registrado, a Alice Dark, que tem o perfil de irônica, sombra, sarcástica, e isso vale para as outras duas Alices (Samires e Alberto), pensei em algo do sombrio ao sensual em diálogo com exagero e o estranho, então, me apropriando de um figurino que já existe na faculdade, irei adaptar aos meus desejos. Penas negras me interessam. 

Resultado de imagem para ney matogrosso figurino

      O Dodô é um pássaro extinto. Tentando construir algo para este personagem e refletindo sobre algumas inquietações do texto de Bya, me lembrei da Narceja, um pássaro super colorido do filme "UP Altas Aventuras", que consigo carrega uma lembrança feliz, uma parte inesquecível de mim, nesse sentido, Dodô será baseado neste pássaro.

Resultado de imagem para narceja up altas aventuras

        A pergunta que impera é: afinal de contas, o que isso tem a ver com interpretação? Tem a ver com a frustração de pensar um personagem, viver um personagem, mas não conseguir materializar aquele personagem, ainda que entendendo o figurino, dentro de todo um trabalho cênico de composição, como um detalhe importante, porém que não carece da tamanha urgência e frustração que me dediquei a esse pensamento. Contudo, a composição de um personagem é algo que me inquieta bastante, porque sou detalhista, eu quero ver a existência do que estou pensando, ainda que eu precise construí-la todos os dias, me refiro aqui aos aspectos internos de pulsão, construí-la no sentido de trazer à memória o já feito, se inserir um detalhe imaginativo para brotar uma faísca interna que promova a dilatação, a verdade cênica, a pulsão. 

       Pesquisando sobre a expressão NÃO-EU MEU, que li no artigo de Marcello Lazaratto a respeito do Campo de Visão, em que na ocasião ele cita a destacada expressão, que é de Bachelard, descobri um valioso material, um encontro entre Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama e um dos pilares da teoria que estou desenvolvendo, o Intrateatro; Gaston Bachelard, que foi um filósofo e poeta francês. Ambos debatem a respeito do cosmodrama, e nesse diálogo há espaço sobre a crianção de um mundo criativo, de um universo que criamos, que somos capazes de criar. Vejamos: 

M – Claro, pois o poeta não esconde complexos, mas germes de forma e seu objetivo é um ato de nascimento. Portanto, não está meramente seguindo um padrão, ele pode alterar o mundo criativamente. 

B – É assim que a poesia poetiza ao mesmo tempo o sonhador e seu mundo! 

M – Quando um poeta cria um Fausto ou um Hamlet, a pedra angular de sua criação é o seu corpo. O germe seminal de seus heróis ganha existência, e suas qualidades físicas e espirituais desenvolvem-se lado a lado. Corpo e alma são igualmente importantes. Quando a obra está concluída, o herói ganha existência completa, não uma pálida ideia, mas uma pessoa real.  

B – Où là là! Sua fala trás inúmeras idéias que compartilho! Neste sentido, diríamos que o poeta não cria como vive, mas vive como cria, e as formas só ganham contorno em relação às substâncias que as alimentam. Quanto ao corpo, é mesmo possível dizer que as imagens materiais nascem nos órgãos. Os primeiros interesses psíquicos que deixam traços inapagáveis em nossos sonhos são interesses orgânicos. A primeira convicção calorosa é um bem estar corporal. Na carne, nos órgãos é que têm nascimento as imagens materiais primeiras. Daí toda a materialidade das imagens. E o poeta inventa mundos. (CARDIM, 2008, p. 8-9)
       "O herói ganha existência completa, não uma pálida ideia, mas uma pessoa real." Assim é como vejo a Duquesa, ela se tornou uma pessoa genuinamente real porque ela foi construída a partir de materiais que eu precisei criar sem maiores referências que não a literatura que não descreve traços de personalidade. Quando um personagem é apossado de nossos afetos, de fatias de nossas vidas, podemos afirmar que ele é real. Essa realidade, essa verdade, também é muito cara no campo terapia, do psicodrama, do intrateatro, que visam a transformação por meio da linguagem cênica. 

       É importante pontuar que, se pensarmos a pessoa do poeta referida no fragmento do diálogo acima como o ator, nos colocamos na qualidade de criadores de uma realidade, em nossa caso, cênica, mas com os mesmo métodos, com o corpo, com os estímulos, com a alma, conosco.

       É muito interessante discorrer sobre a questão da identidade de nossos personagens, e foi o que nos trouxe à luz no debate da aula de corpo que teimo em escrever agora! Foi excitante como muitas ideias surgiram e foram de encontro com a composição da Duquesa e por isso estou discorrendo agora sobre isso. Afinal de contas, como é que se compõe um personagens? A essa pergunta eu dedicaria um artigo. Seria ótimo. Mas quero discorrer sobre o que surgiu no debate do texto e que faz conexão com minha experiência enquanto Duquesa, com quem tive mais relações até o momento. 

        Pois bem, citando Sarrazac (2002), Braga (2007, p. 1) afirma que "ele privilegia a criação da figura individual com função coral", nesse sentido, vê-se um novo olhar a respeito do Coro, esse coro tão precioso no campo de visão, esse coro que trouxe alguns conflitos na interpretação o texto, esse coro o qual Lazzaratto (2015, p. 32)  tanto preza:
 "O Campo de Visão acredita no ator. Não somente no ator, isolado, manifestando sua vontade e seus caprichos, mas no ator em relação aos outros atores, à essencialidade de sua arte, às coisas da vida." 

      Percebemos que Sarrazac faz uma transposição (conforme lemos em Bya Braga na frase destaque) no ponto de vista do coro, referindo-se ao coro de materiais e não de pessoas. Esse coro de materiais seriam os elementos responsáveis pela desfiguração do personagem, segundo Braga (2007), apontando ainda que 
"A idéia de “monstro” não se restringe a forma, essencialmente, mas pode ser traço e ação numa zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal nos diz o filósofo José Gil (GIL, 2005)"
       Vemos nesse trecho a respeito, digamos, da persona-monstro, e também lemos que isto não restringe à forma. No diálogo da aula de corpo eu disse que existe uma linha tênue, um traço que desenha o ator, e leva a indiscernibilidade do espectador em relação ao que se vê, e aí a poética se instaura. A poética também se instaura numa superfície complexa, numa margem complexa, cheia de curvas, de geometria, de espaços, de instabilidade. Essa informação me fez rever o figurino dos meus personagens. 

       Mas para não fugirmos dessa ideia de coro de materiais, isso me levou a recordar muitíssimo de dois materiais: a subpartitura¹, de Eugênio Barba, e o Empilhamento, de Rajane K. Arruda. Ambos materiais têm o potencial de pulsão interna e se caracterizam como função coral no trabalho cênico e considerarmos o ponto de vista de Sarrazac. 

        Vamos entender um pouco sobre esses dois materiais-coro:

"Podemos então entender a subpartitura como o conjunto de elementos  ou pontos de apoio que mobilizam o ator internamente, e que estão relacionados, por sua vez, à execução da partitura." (JR, 2010, p. 6) 

      O Empilhamento trata-se da tensão de vários materiais internos e externos provocando a excitabilidade do ator, nesse sentido 
"A função do arranjo implica um trabalho com diferentes modalidades de material (palavra, objeto, som, imagem, movimento) a um só tempo. Estes materiais exercem sobre o ator a excitabilidade. É o que, em última instância, define uma escolha (em detrimento de outras): o que causa excitabilidade (em outras palavras, o que incide). (ARRUDA, 2015, p. 4-5) "

        Em ambas as teorias percebemos a função-coro, resta-nos o trabalho de utilizarmos desse coro na composição da persona-monstro de nossos personagens. Em meu discurso, pontuei que, o trabalho físico, o pré-expressivo "que não leva em consideração intenções, sentimentos, identificação ou não-identificação dos atores com o personagem" (RETAMOZZO; ROSSETO, 2012, p. 46. apud MARTINS, 2004, p. 44)  é um procedimento cênico eficaz para o devir. É no esgotamento que a criatividade surge, no esgotamento que movimentos que não faríamos aparecem, é nesse estado de devir que materiais incidem e de repente, é o espaço obscuro da exaustão que a persona-monstro pode se instaurar sem que esperemos.  

       O estado de devir é um estado psíquico-corporal no qual nos deleitamos nos sentidos, nas sensações, nas externalidades em contraponto com as internalidades. Expus no mesmo discurso alguns questionamentos: afinal de contas, o que é desaversar-se? O que é desumanizar-se? O que é desfigurar-se? Como é que o espectador presencia isso, ou sente com a energia do ator? Assim finalizo, em devir... 

       





______________________________________________________
Notas 
¹ O termo é proposto por Eugênio Barba. "É constituída por imagens circunstanciadas ou por regras técnicas, por experiências ou perguntas feitas a si mesmo, ou por ritmos, modelos dinâmicos ou por situações vividas ou hipotéticas." (JR, 2010 apud BARBA,  1992, p.171)



Referências Bibliográficas 

BRAGA, Bya. Ator de prova: questões para uma ação-física coral. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas: UFMG, 2007. 

CARDIM, Sylvia Ferraz da Cruz. Um Encontro Oportuno: Moreno e Bachelard - em direção ao Cosmodrama. DPSedes – Departamento de Psicodrama – Instituto Sedes Sapientiae: Julho, 2008

JR, Umberto Cerasoli. As contribuições de Stanislávski, Decroux, Grotowski e Barba para o desenvolvimento do conceito de ação-física. VI Congresso de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas: ECA– USP, 2010. 

RETAMOZZO, D. M; ROSSETO, R. O corpo extra-cotidiano na instituição de formatação  do cotidiano. O Mosaico: R. Pesq. Artes, Curitiba, n. 7, p. 45-54, jan./jun., 2012. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário