domingo, 28 de agosto de 2016

ÊNFASE EM INTERPRETAÇÃO I: REPRESENTAR? INTERPRETAR?

"...um ator, quando interpreta um texto dramático ou literário,  faz  uma tradução de uma linguagem literária para a linguagem  cênica;  portanto,  “ele é um intermediário, alguém que está entre. No caso  do teatro,  ele está  entre a personagem e o espectador, entre algo que é ficção, e alguém real e material” (BURNIER, 1994, p. 27)." 
RENATO FERRACINI


A consigna que marca essa nova jornada do curso de Artes Cênicas, que eu diria ser uma viagem um tanto desgastante, de suor, de decupagem, de construção e desconstrução, está estritamente enquadrada sobre a questão do conceito de interpretar e o conflito que tenho quando falamos em representar. Espero conseguir nesta dissertação encontrar caminhos que conceituem essas ações na prática do processo de elaboração de Alice no País das Maravilhas. 

       Em junho tive o privilégio de participar da Oficina de Direção Teatral¹ - Mauvais Mots: As Criadas, na qual um paradigma foi quebrado: a direção de um espetáculo é democrática. Rejane Arruda, nossa professora das disciplinas práticas sempre pontua que o material cênico, para dar certo, para gerar pulsão, precisa vir do ator, e não mais o diretor entregar o texto pronto e com os personagens definidos e assim, começar o trabalho.

      No trabalho de representação o ator se empresta, seu corpo, sua voz, suas energias potenciais, em busca de um personagem ainda não identificado, não pronto. É uma busca em primeira pessoa. 

"Poderíamos dizer que a “personagem”, para o ator que representa, vem antes do texto, já que ele possui um vocabulário de ações físicas e vocais codificadas que poderá emprestar a ela a qualquer momento." (FERRACINI, 2001, p. 32)
     Por isso a direção é democrática, é uma troca, uma elaboração mútua, contudo, toda essa elaboração necessita do olhar do diretor, que é a pessoa responsável pelos recortes, por imprimir seu estilo, sua assinatura, se não for assim, o trabalho fica à mercê de muitos olhares, de muitos pontos de vista e portanto, corre o risco de não acontecer. O ator não se vê, e esse é um dos maiores lamentos deste ser que se lança nas profundezas de si numa busca improvável e ao mesmo tempo não pode se espreitar. 

     Para o ator que interpreta, colocamos à vista o que Renato Ferracini cita de Burnier: 
"geralmente, o conceito de interpretação também evoca o da identificação psíquica do ator com a personagem. Além de, historicamente, estar intimamente ligado ao  texto  literário” (FERRACINI, 2001, apud BURNIER, 1994, p. 28)." 

    Inferimos aqui que a interpretação faz jus ao seu nome. É um campo da releitura sensível à partir de um material pré-existente. 


"A Interpretação está intimamente relacionada com o texto dramático. O intérprete funciona como um tradutor do texto em cena e todos os dados e informações para construção de sua personagem são retirados do texto e/ou em função deste." (idem, p. 33)
    Na interpretação, o ator imprime suas ações físicas, vocais e psíquicas num determinado personagem. Ele ilude o espectador sendo quem não é, em contrapartida, ele o é, porque essas ações construídas para tal personagem não pertencem a esta entidade, mas sim ao próprio ator. 

      Na interpretação, existe um trabalho que independe do texto ou de um material pré-determinado. 

"a Representação, como já mencionado, independe do texto dramático. O ator cria a partir de si mesmo. Assim, sem informações preliminares ou dados para  a  construção  de  sua  personagem,  ele  necessita  operacionalizar    uma maneira nova de construção de sua arte. Ele necessita, então, de parâmetros objetivos que permitam a construção de uma cena independente  de  informações literárias, analíticas ou psíquicas. Esses parâmetros  objetivos  serão as ações físicas e vocais orgânicas." (idem, 33-34)
    No trabalho de Alice é capaz que esses conceitos entrem em conflito, ou que se coloquem numa visualidade paradoxal no sentido pragmático considerando o contexto do referido espetáculo. Eu, por exemplo, nunca tive contato algum com Alice, nem em dramaturgia, nem em cinema, nem contos, apenas ouvi dizer; em algumas aulas, logo nos primórdios da proposta, fomos orientados a fazer coisas como Alice, a sermos Alice, eu, sem base alguma, construí uma Alice imprimindo os meus estímulos pessoais a partir de uma personalidade descrita alheiamente. Interpretei ou representei? Quando existe uma referência literária, como neste caso, mas ainda assim nos engajamos em construir nosso própria poética de maneira que, a descrição literária se oponha, interpretamos ou representamos? Quando um ator produz uma partitura vocal e física para determinado personagem, mas outro ator precise absorvê-la para outro personagem, e para isso, precisa fazer todo um trabalho de pulsão acrescentando de si na partitura "roubada", ele está interpretando ou representando? Representação é quando não há uma base literária ou dramática a ser seguida, logo, todo espetáculo baseado numa biografia é interpretado? Podemos dizer que TODO o espetáculo é interpretado, uma vez que todo ele necessite de um roteiro? Talvez eu tenha entendido sobre esse conceitos, talvez não. Estudando sobre esse assunto elaborei um poema que, talvez, responda ou suscite mais indagações e equívocos: 

 INTERPRETAR E REPRESENTAR
Allan Maykson

Interpetar é releitura do pronto 
Representar é construir o ponto. 
Interpretar é penetrar na escuridão 
Representar é dar corpo ao obscuro. 
Interpretar é abstração mimética 
Representar é mimetizar a abstração. 
Interpretar é personificar palavras 
Representar é escrever de dentro pra fora. 
Intrepetar é reconhecer-se no personagem 
Representar é descobrir novas fatis de si nele. 
Interpretar galgar um caminho respondido 
Representar é perguntar aonde está o caminho. 
Interpretar é ato 
Representar é ser. 
Interpretar é status 
Representar é perder. 
Interpretar é fato 
Representar é loucura. 
Interpretar é sorte 
Representar é morte
Morrer-se, matar-se, rescussitar-se. 

28 de agosto de 2016

     
      A questão que fica está posta à mesa. Agora quero dar lugar à prática da disciplina de Interpretação I. Em certo momento da construção de Alice, nos foi orientado recortar uma cena para levarmos à aula. Não podíamos fazer nada com ela, tínhamos de levá-la virgem, sem ensaiar falas, sem partiturizar, nada, absolutamente. 

      A cena que eu escolhi foi a da Duquesa, quando ela está ninando seu neném e Alice chega na cozinha. Alguns fatores me chamaram a atenção: (1) tenho um apreço imensurável com crianças, tanto é que desenvolvo trabalhos com esse público; (2) gosto de música, inclusive quando esta faz parte de uma cena, e na ena da Duquesa existe uma canção de ninar (macabra); (3) tal qual a duquesa, eu nunca me dei bem com números; (4) seria absurdo para mim assistir uma mãe cantando e ninando uma criança da forma com que faz a duquesa; (5) assim como ela, tenho a docilidade e sensibilidade para lidar com a fragilidade de um neném, mas sou bastante explosivo e arrogante. 

     A proposta na sala era fazer a "memorização através da escrita", nessa proposição temos de memorizar o texto através da escrita ao invés de simplesmente decorar as falas. Rejane, fez breves paráfrases que de grandes teatrólogos que aderiram a esta forma de apropriação textual, em seu discurso mencionou que, para Kusnet a escrita pode gerar ações físicas e em Stanislavski, referiu-se à Análise Ativa, em cujo método faz-se o trabalho de escutar o texto em ação. Em ambos discursos, estamos nos referindo a ação do texto antes mesmo de memorizarmo-lo. Contudo, existe o trabalho da escrita que nada mais é do que treinar impulsos na imobilidade. 

      A escrita tem um enquadramento diferente do que se passa internamente, há uma oposição, cria mais impulso, uma concentração na grafia, enquanto isso a mente está livre, isto implica uma divisão de foco. A mente dilata, preenche por dentro. 

     Rejane propõe ainda, escrever os outros materiais além do texto-dado ou sob ele, as ações físicas, as falas internas, as livres associações, as imagens internas, ou seja, o texto físico é a cereja do bolo, a ponta do iceberg, existe uma outra camada embricada de impulso. 
"Isto é, o pré-jogo: uma espécie de rubrica, uma "pré" organização, que, em cena, será transformada. Ela é trabalhada para ser posta em relação com os outros materiais - daquele instante de cena." (ARRUDA, 2013, p. 91)

    Arruda (idem) defende que a fala externa ao ser enunciada aparece como impulso, uma vez que preenchida de pulsão através do "sub-texto", a fala externa é substituída, em pulsão, pela fala interna. 

     Nesse sentido, vejamos na prática a constituição desse material que elaborei em aula: 


       Essa foi uma primeira tentativa na qual dispus o texto objetivo em uma coluna e o subjetivo n'outra coluna, contudo, a professora pontuou que assim poderia ser ineficaz, porque há uma outra reverberação quando visualizo os textos sobrepostos. Então fiz outra organização: 


       Nesta segunda tentativa o texto e seus materiais realmente se organizaram melhor e tiveram melhor visualidade. Transcrever esse material suscitou alguns fenômenos: as falas internas de outrora precisaram ser alteradas quase que em sua maioria, e algumas ações ações físicas. Isso implica num re-arranjo constante cada vez que retocamos esse material, no entanto, o que já havia sido feito não se perde, pelo contrário, se acumula na tessitura mental e se insere ainda como "material pulsional indireto²", ou poderiam se classificar como "materiais ocultos de incidência" (idem, p. 92)

      O procedimento proposto excluía toda e qualquer possibilidade de se utilizar a voz enquanto se sentia o texto fisicamente, contudo, foi uma regra que não consegui seguir porque queria muito sentir a integralidade da Voz junto à pulsão acumulada do Corpo. Mas, fiquemos com o resultado desse recorte que fiz de todo o caminho da Interpretação I até agora: 


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Notas
¹ Análise de oficina disponível neste link: http://intrateatro.blogspot.com.br/2016/06/oficina-de-direcao-teatral.html.

² "Material pulsional indireto" pode ser o recorte de uma nova pesquisa, na qual posso tentar defender o efeito involuntário que o material residual pode promover numa ação. 


Referências Bibliográficas

ARRUDA, R. K. A Incorporação do Pré-jogo: Tentativas de Formalização de um Procedimento Estranho. Campinas: Pitágoras 500 – Revista de Estudos Teatrais, 2013.

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do
ator. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.

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