domingo, 7 de agosto de 2016

ÊNFASE EM CORPO II: O CORPO DECIDIDO

"É a mola antes de soltar, "o arco curvado e estirado antes da mira, a pressão das águas sobre o dique...""

(TOLENTINO apud BARBA¹)

O Corpo Decidido é uma qualidade corporal na qual "eu não decido, eu já estou decidido", a respeito do destacado, Barba define como "Stats", o instante em que precede a ação no espaço, quando o corpo está pronto, energeticamente preenchido, reverberado de conteúdos internos, móvel no intra embora estático externamente.

     A frase que introduz este texto é uma descrição de Barba referente ao Corpo Decido, é uma energia que já se presentifica, porém uma energia suspensa até o momento ideal para utilizá-la, ou seja, durante um espetáculo. É nesse ponto que desejo chegar para começar a relatar minha experiência neste segundo semestre. 

      Durante os treinamentos de Voz II, somos orientados a fazer uma parede ombro-a-ombro, em estado neutro de corpo, olhar o espaço cênico e ir em direção àquele pedaço de chão que nos chamou. O instante de estado neutro sempre me evoca ao Stats, não no sentido de um trabalho pré-representativo ou pré-espetáculo, num eu-circunstanciado ou no contexto diegético de um personagem, mas no sentido de presentificação de um corpo eu lirico. Se no poema o eu lírico trata-se da VOZ que expressa a subjetividade do autor, no fazer atoral o eu lírico, além da voz, pode se estabelecer como o corpo que expressa a subjetividade do ator. Quero propor, portanto, o "Stats" como uma possível ferramenta de "desembrulhamento" pessoal, colocando a ação cotidiana como figura de fundo da ação, e a ação extra-cotidiana como plano de frente. A imagem a saber ilustra essa dualidade:


     O desembrulhamento se caracteriza como um despimento do aluno que acaba de chegar para uma aula. Desembrulhar-se é colocar-se aberto à recepção de afetos externos que vão invadir o corpo e suscitar afetos internos. O Stats coloca-se aqui como um recomeço, a utilização de uma nova persona. O Stats pode significar a o despertamento individual do seu bios-cênico. O desembrulhamento só acontece quando decidimos estar ali, naquele momento, naquele espaço e cumprindo com suas ordens, o espaço é físico e biológico, porque atuamos sobre nós mesmos e sobre os outros. Sem Stats não há presença, sem presença não não há o desembrulhamento, sem desembrulhamento não há recepção ou afetação, logo, estamos em qualquer lugar menos no espaço cênico. E não caberia bem dizer que "o corpo está ali, mas a mente não", porque o corpo denuncia a ausência mental ou interna. 

     Quando estamos inteiros no fazer atoral nosso verbo muda de "estar" para "ser", quando somos, adquirimos uma identidade integral do fazer. Podemos importar a questão da organicidade para definir esse movimento interno. Definir não, talvez, inferir, no teatro nada se define, se fecha ou se acaba. A organicidade é um estado de afetação integral sob o qual todo o corpo pensa, respira, se move em prol de uma ação. Nenhuma partícula fica de fora do ato de... não de fazer uma ação, mas de SER a ação. Ferracini (2005, p. 127) contribui suntuosamente para o conceito, que ele mesmo diz ser incerto, do termo "organicidade": 

Dizer que um “corpo atoral” é orgânico é o mesmo que dizer que existe um corpo-subjétil
ou ainda que um ator é “vivo”. A organicidade é a capacidade relacional em dinâmica de todos
os elementos, virtuais e atuais que constituem esse corpo-subjétil. É o elemento que coloca a
máquina poética de jogo em movimento. Portanto, não pode ser pensada de modo pontual e
definida, e daí vem sua dificuldade de conceituação. A organicidade não se realiza por qualquer
um dos elementos, mas a ausência de qualquer elemento faz com que a organicidade não
exista. Nesse sentido é que organicidade é “vida” do ator, “vida” do corpo-subjétil. Um elemento
vivo se realiza, em termos biológicos, por ser uma máquina autopoiética ² de autogestão circular
de seus elementos. O mesmo é a vida do ator, enquanto máquina poética, corpo-subjétil,
vida “entre” corpórea/incorpórea, orgânica/ inorgânica do ator. A organicidade é a aderência
dos elementos, o glúon, uma força que os recria a cada instante. A organicidade é uma força
que faz circular essas multiplicidades. Ela não se pontua, mora nas reticências...

     Quando nos desembrulhamos a organicidade se orquestra. Sim! Se orquestra. O corpo orgânico não se estabelece numa decisão "agora estarei orgânico", definitivamente não. A organicidade é fruto de uma abstração, de um afeto, de uma absorção, existe uma composição, uma atualização e acesso de memórias ou estímulos a partir dos materiais cênicos, existe a pré-expressividade. A pré-expressividade é o potencial dilatador do ator nos pólos mente-corpo. A pré-expressividade evoca estranhamento, cenicidade e a tão gloriosa e sensitiva presença cênica sobre a qual Barba (1995) discorre em seus escritos. A seguir veremos uma invasão extra-cotidiana no campo de visão de Lucas Suares e seus jeitos poéticos de andar:


     A exploração do espaço cênico, a expressão corporal, a intensidade dos movimentos, a verdade das sutilezas quase imperceptíveis, um corpo armado, afetado, um corpo em outro estado mental. Todas essas características dizem respeito à organicidade. É perceptível que Lucas não está fazendo uma ação, ele está SENDO a sua ação, e para SER é preciso ver. Quando observo uma ação física como esta tento imaginar que imagens estão sendo visualizadas para formar tantas figuras indecifráveis, o que está sendo subjetivado e externado, quais conteúdos levam ao movimento cíclico inspansão e expansão, existe uma velocidade interna que impulsa, tal qual um movimento interno que pulsa e todo o corpo É aquela ação, isso é orgânico.

      Neste 2º semestre estamos montando Alice no País das Maravilhas, portanto, as aulas práticas são momentos de elaboração, experimentação e montagem do espetáculo. Basicamente absorvemos o contexto diegético de Alice e aplicamos em nossas atividades vocais, corporais e improvisacionais (aulas de Jogos Teatrais). No vídeo a seguir estamos procurando ações de estranhamento para os personagens, explorando formas variadas de andar. Tentei investigar uma mistura de três personagens de Johnny Deep: Edward (Edward Mãos de Tesoura), Capitão Jack Sparrow (Piratas do Caribe) e o Chapeleiro Maluco (Alice no País das Maravilhas), respectivamente:





       O resultado dessa mistura ou pelo menos da tentativa gerou uma forma de andar estranhada, porém com minhas expectativas ainda não alcançadas:



     Cada personagem citado possui uma maneira peculiar de andar, pesquisando um pouco mais sobre os bastidores do filme de Tim Burton encontrei algumas referências importantes para a a elaboração dessa ação e de construção do personagem:



      Perce-se uma plasticidade corporal precisamente estranhada, movimentos dilatados, corpo expandido e treinamento. É evidente todo um trabalho exaustivo até. Como sempre nos é pontuado no curso, o trabalho do ator não tem glamour nenhum, pelo contrário, é muita dedicação, muito esforço, é preciso abrir mão de muitas coisas como família, amigos, sono, porque há uma demanda grande para o ator. O trabalho de lapidação, este que estamos vivenciando enquanto alunos, não está só relacionado ao prazer, mas também ao desprazer, afinal de contas, no mercado não se faz apenas o que quer, não se tem o personagem que se deseja às vezes, e como lidar com essas circunstâncias lá fora? Ao assistir vídeos de bastidores de teatro e cinema notamos que por de trás de toda uma beleza do produto final há um esforço físico, mental e emotivo. Resgatemos os processos da nossa aula para exemplificar esse esforço e esse "produto final", que pode ser desde um espetáculo até uma partitura de segundos:

1º Temos um aquecimento das articulações, na nova proposição em Corpo II, iremos explorar mais as contorções, principalmente na área da coluna vertebral.

2º Temos as ações de furar, empurrar, deslizar e agora contorcer e cair.

3º Temos o campo de visão e durante esse processo temos a

4º pesquisa pessoal. E por fim

5º a Partitura Corporal, queria o produto final da aula.

      Eu deveria achar outra palavra para substituir esse "produto final", porque esse resultado é mais um pontapé inicial do que a finalização.

     Para melhor compreensão, o vídeo a visualizar apresenta o 3º e o 4º item do processo. Se observamos as ações, neste caso as do meu campo de visão liderado pelo Caio Paranaguá, perceberemos que a partitura final (item 5º) é fruto de recortes de ações físicas.


      A seguir mostrarei o vídeo da partitura que eu e Caio montamos a partir da absorção do campo de visão que ele liderou, uma pretensão minha porque me afeitei em determinado momento, tanto que meus olhos marejaram. Nesta partitura estou no País das Maravilhas:




DESCRIÇÃO DA PARTITURA

1ª Ação: Arrastar 
Fala interna: Es-tam-os-qua-se-lá

2ª Ação: Levantar, contorcer e equilibrar
Fala interna: Cuidado! Devagar!

3ª Ação: Abaixar, pegar algo, soltar, furar
Fala interna: Uma borboleta ferida! Voe!!! Você consegue! 

4ª Ação: Abaixando com o dedo indicador e batendo a mão no chão. 
Fala interna: Ela não vai conseguir! Tá caindo! Mata!!!

      No momento em que nos foi proposto a construção da partitura cênica roubando ou absorvendo ações do outro ou até nossas mesmo, imediatamente me veio o campo de visão do Caio. Então estava treinando aquele recorte quando ele se propôs a fazer a partitura comigo. Esmagar uma borboleta que não conseguia voar... trágico. Apagar a dor com a morte. Severo. Porém, muitas vezes o melhor a ser feito. Claro que algo reverberou dentro de mim. Quando eu era criança, muito moleque, matei um gatinho amarelo afogado. Era um tempo muito chuvoso, o gatinho estava na rua à mercê e sendo maltratado pelos moleques da rua, não me lembro bem o que me deu, eu sei que eu peguei um pedaço de pau para não tocar no gato, porque diziam que ele estava doente, ele estava perto de uma poça de água da chuva, então, pequei a cabecinha dele e afundei na poça até sua morte. Ao fazer aquilo, os moleques vieram correndo atrás de mim para me bater e fugi para casa, mas aquela cena do seu corpinho tentando se salvar não saiu nunca mais da minha cabeça. Depois chorei, me arrependi, mas os resquícios ainda ficam e hoje posso me utilizar deles para produzir certa cenicidade. O gato era como este da foto, porém uma versão bem adoentada. 



      Continuando nosso raciocínio,  um pouco acima citamos que o trabalho atoral exige esforço físico, mental e emotivo. Físico porque é incessante, porque é orgânico, logo, todo seu corpo age em prol de um objetivo, porque é grande, expansivo e dilatado, e mesmo quando não é grande e expansivo, é dilatado, porque fazer movimentos pequenos requer precisão física e esforço, afinal, o pequeno também é extra-cotidiano; mental porque o corpo não se desvincula da mente para agir, o corpo só dilata quando a mente também está dilatada; emotivo porque o trabalho atoral é "afetar-se-me" ininterruptamente, com a memória emotiva, com a substituição, com seu eu-lírico, podemos fazer alusão ao conatus de Espinosa, o movimento de afetar e ser afetado. 

      No âmbito físico, façamos um recorte de Latina (2003 apud Stanislavski, 1998): 

“Em cena, vocês devem estar sempre representando alguma coisa; a ação e o movimento constituem a base da arte do ator, mesmo a imobilidade exterior não implica passividade. Vocês podem estar sentados sem fazer nenhum movimento e ao mesmo tempo estar em plena atividade."

      Stanislavski, do decorrer de seu trabalho na busca pelo realismo, contribuiu significativamente para o desenrolar de hipóteses a respeito do jogo entre interno-externo, não obstante, ao tratarmos do âmbito mental,  aprendemos com Barba (1995, p. 55) que 

"Não se trabalha no corpo ou na voz, trabalha-se na energia. Assim como não há ação vocal que não seja também ação física, não ação física que não seja ação mental. Se há treinamento físico, também deve haver treinamento mental". 

     Em seus estudos, Barba nos presenteia com a função energética no ator, a energia não permite a dicotomização, a energia é responsável pela presença cênica do ator. A energia do ator é uma parte da elaboração cênica que me intriga e me inspira a desenvolver mais sobre isso. Quero defender a energia enquanto potência criativa, resultado de uma potência que faz com que o ator afete e seja afetado, essa afetação ao afetar os outros seria a energia que circunda dele para o público e do público para ele. À potência que afeta e se é afetado, Espinosa refere-se como Conatus³. Espinosa compõe a fundamentação teórica do meu projeto de pesquisa Intrateatro: Procecimentos Cênicos Aplicados à Arteterapia. O psicólogo Rafael Trindade, responsável pelo site Razão Inadequada4, nos agracia  com uma pesquisa aprofundada sobre Espinosa de onde fiz este recorte a respeito de potência:

"Como essa potência se manifesta? Através do poder de existir, de afetar e ser afetado. Como parte da potência infinita de Deus, eu tenho em mim forças que se esforçam para manterem-se na existência. É o conatus, uma força ativa que se esforça (tal como Deus), para produzir. E mais, esta potência que existe em ato, ativamente, tem características singulares de afetar e ser afetado". 

      Podemos inferir que a potência espinosana cabe no processo atoral. Renato Ferracini, na seção "O que você está lendo?"5, da revista Sala Preta nos dá esse indício ao dizer que seus estudos tem levado a "pensar o corpo como uma potência de rede de afetos e para essa questão o livro “ÉTICA” de Espinosa deve estar sempre a mão e grudado nos olhos. Que desenvolvamos no decorrer do processo o conceito de Energia do Ator, mais um projeto. 

     Uma outra proposição da aula de corpo foi partiturizar a cena de um filme. Como estamos construindo Alice e muitos dos meus colegas disseram que o gato do filme, Cheshire, lembra a mim, resolver experimentar uma absorção desta cena do gato: 



     A montagem da partitura foi um tanto confusa, porque Cheshire é um tanto enigmático e quase que místico. Me perguntei: como colocar em cena o fato de que o gato camufla partes do corpo? Como colocar em cena o rabo do gato? Inclusive colocar em cena o rabo do gato foi intrigante, o rabo do gato é o símbolo dele na minha opinião, é o que faz as pessoas saberem que estou partiturizando o gato. Descobri uma forma de dar forma ao rabo somente no treinamento pouco antes da apresentação: levantando e balançando uma das pernas. Para a camuflagem importei um recurso da primeira oficina de teatro que fiz, ainda no ano passado, escondia as partes camufladas com as mãos abertas. Está no vídeo que mostrarei depois da descrição da partitura:

1ª Ação: "Voar" entre as árvores, parar num galho. 
Fala interna: Olha! Olha! Olha! Uma menina! 

2ª Ação: Levantar o dedo e voltar a voar. 
Fala interna: Tive uma ideia! Vou lá!

3ª Ação: Enfaixar o braço ferido da Alice. 
Fala interna: me deixa te ajudar. 

4ª Ação: Voltar a voar e parar no céu. 
Fala interna: Toma cuidado! Po-de-se-per-der!

Vejamos o vídeo:




        Nesta mesma aula muitos colegas trouxeram suas partituras, e sobre o processo de "afetar-se-me", deixo dois dos trabalhos que me tocaram invasiva e profundamente, não pediram lincença: 

      Primeiro, este é o Caio, por quem sinto carinho incomensurável, todos os dias preciso dizer que o amo. Caio se destaca no curso no aspecto cômico, com essa partitura nada cômica, ele surpreende a todos com sua primeira performance dramática. Chocante! Eu chorei!



     Aqui, a partitura do Lucas, outro amigo, irmão, amável. Lucas chegou no 2º semestre no tratro, ou, o teatro chegou nele. Nessa partitura eu me arrepio o tempo todo. Me suscitou afetos de presídio, de guerra, de obscuridão, de muita dor. Deslumbrante! 


      Por fim, deixo um fragmento do texto de Rafael Trindade sobre a beleza do que é existir: 

"Existir é a capacidade de afetar e ser afetado, é agir no mundo; essência é um grau de potência, conatus que se esforça para permanecer existindo; toda existência é, pela garantia das causas naturais, necessária, já que é expressão de um grau certo de potência divina. Essência é potência. Somos corpos, limitados em extensão e duração, modos, como diria Espinosa, mas os modos estão em Deus. Isso significa que afirmar a minha potência é afirmar o que há de divino em mim."

     Sinto cada vez mais que existir é teatrar! 

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Notas

¹ Disponível em <http://www.caleidoscopio.art.br/grupobayu/eugenio05.htm>, acesso em agosto/2016.

² “Naquele momento, também percebi que não é o fluxo de matéria ou fluxo de energia como fluxo de matéria ou energia, nem nenhum componente particular como componentes com propriedades especiais o que de fato faz e define o ser vivo como tal. Um ser vivo ocorre e consiste na dinâmica de
realização de uma rede de transformações e de produções moleculares, de maneira tal que todas as
moléculas produzidas e transformadas no operar dessa rede fazem parte da rede [...] percebi que o ser
vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que acontece como
unidade separada e singular como resultado do operar e no operar. Das diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de interações e relações de proximidade que o especificam como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, configurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extensão” (Ferracini apud Maturana & Varela, 1997, p. 15).

³"força para existir e agir, afetar e ser afetado." Diponível em https://razaoinadequada.com/2014/07/15/espinosa-origem-e-natureza-dos-afetos/

4 Disponível em https://razaoinadequada.com/2014/08/07/espinosa-a-potencia-do-ser/

5 Disponível em http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57496/60515



Referências Bibliográficas

BARBA, E.; SAVARESE, N. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo: HUCITEC, 1995.

FERRACINI, Renato. Lume: 20 anos em busca da organicidade. Revista Sala Preta: Universidade de São de São Paulo, 2005. Disponível em <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57271/60253>, acesso em agosto/2016.


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