sábado, 13 de agosto de 2016

A CORPOREIDADE DA VOZ

"...o mesmo impulso que pode engendrar uma ação física, pode também engendrar uma ação vocal, ou uma ação física/vocal. Podemos afirmar, inclusive, que a voz também é corpo." 

(FERRACINI, Renato. 2001, p. 166)


Ao absorver corporeamente traços do imagético no trabalho teatral, é possível agregar a esse estímulo externo corpo, emoção, contexto e por conseguinte, uma voz que dá existência auditiva àquilo que era apenas uma imagem. Quando a imagem é absorvida, ela se torna símbolo, e com os símbolos tudo podemos fazer com eles, e claro, eles conosco. Logo, no trabalho atoral, podemos perceber que, tudo se cria e se transforma, ou então, como nos deixou escrito o considerado pai da química moderna, Antoine Laivosier, "nada se cria, tudo se transforma", mas o que nos interessa integralmente sobre a criação é que, a forma de o ator dar forma às coisas é ultrapassando fronteiras, as suas próprias de racionalidade, compreensão, explicação, "porquequização", justificativa. Resta-nos saber que "criar é uma busca insana por poética", Rejane Arruda, nossa diretora (e também coordenadora e professora do curso de Artes Cênicas da UVV) na montagem de Alice no País das Maravilhas (in curso) foi muito feliz ao afetar a muitos com esse dizer. 

      Mas, estou precisando construir um pensando nessa edição do blog, para isso vou me utilizar de duas vivências nas aulas práticas do semestre passado. 

       A minha pouca experiência no quesito Voz enquanto cena e enquanto linguagem me coloca num estado de auto-enfrentamento. Lembro-me com precisão que, logo no início do 1º semestre tínhamos de dar SOM¹ a um fragmento de texto de Tennessee Williams, a fim de compor uma partitura vocal. Foi o meu primeiro grande desafio que, por pouco, não me deixou inerte nesse processo. Agora tentando resgatar esse momento, percebo que a partitura vocal não é só vocal, não quando o fazemos sem treinar a consciência de que o corpo não deve exercer nenhuma ação física, porém, ind'assim, o que o expectador vê é pouco em relação ao que não é mostrado, o que está contido ou impregnado no "intra-corpo". A voz pulsiona o corpo internamente, o pluga a um estado de consciência cênica. O eu-circunstanciado para um trabalho vocal não abre mão do corpo, contudo, 
"A voz não possui esse corpo concreto, mesmo assim podemos falar de uma musculatura da voz que imprime, no espaço, uma vibração, com uma intensidade e uma espacialidade. (FERRACINI, Renato. 2001, p. 165)
   Essa situação um tanto delicada foi necessária para a compreensão de que no teatro tudo existe paralelamente a dois mundos: o interno e o externo, o físico e o não-físico, o concreto e o não-concreto. Existe um universo particular imaterial no sentido palpável, mas que se materializa por meio das palavras, 
"as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação." (BONDIÁ, 2002, p. 20-21)
       Numa aula de corpo de maio deste ano² a proposição era fazer absorção de imagens de vários artista plásticos e imprimí-las no corpo, porém, a sustentação desta não se limitava à imagem em si, mas também ao material cênico utilizado, como a fala interna, percebemos então que o estímulo físico, estático e imagético (as obras de arte) suscitou uma voz interna que sucumbiu o automatismo da mimese e gerou poética, a fala interna, que nada mais é uma voz que apenas nós ouvimos, elaborou um trabalho, um desenho corporal num híbrido com as imagens expostas. Quase me esqueci que tivemos também o estímulo sonoro da música e do surdo e uma troca sem compasso de uma imagem para outra, foi um exercício contínuo de captação e registro de sensações provocadas pelas diversas linguagens. Esses registros não podiam ser excluídos, mas sim enquadrados e logo tínhamos a visualidade do incoerente, do insano, da diversas fisicalidades que se figuravam num corpo extracotidiano. Estávamos vivendo a invasão de externalidades que se contrapunham ao interno e no choque entre os dois polos tínhamos o trabalho de encapsulamento, de enquadramento, podemos inferir que tantos estímulos materiais nos permitiu viver a hibridação genuína, implicando um arranjo corporal potencialmente energético e genuinamente cênico, internamente enquadrado e com sua fala interna e externamente hipertenso.  "Através da hipertensão, as emoções se tornavam corpo”. (FINARDI, 2011, p. 2)


        A respeito desse arranjo, Arruda (2015, p. 4-5) defende que 
"A função do arranjo implica um trabalho com diferentes modalidades de material (palavra, objeto, som, imagem, movimento) a um só tempo. Estes materiais exercem sobre o ator a excitabilidade. É o que, em última instância, define uma escolha (em detrimento de outras): o que causa excitabilidade (em outras palavras, o que incide)." 

      Arruda (idem), sugere que o empilhamento (tensão) de vários materiais,  provoca o que ela definiu como incidência resultando na ação física. Vejamos na imagem à seguir extraída de seu artigo:




      
      Afinal, por que todas essas coisas nos interessam para tratar da voz? Porque utilizamo-nos dos mesmos materiais excitar a voz, afinal, Ferracini (2001, p. 166) afirmou, conforme a citação que abriu esse discurso, que "a voz também é corpo". Estou tratando da voz neste ângulo porque as novas proposições das aulas me estão fazendo perceber isto por meio de atividades vocais simples como a de figurar um som e, por livre associação, externá-lo. Vamos entender melhor essa proposição. 

       Todos nós recebemos pedaços de papéis para neles colocarmos a nossa proposta de som de maneira que esse som esteja associado a uma figura, por exemplo, som de tapete, som de prédio, som de água, som de coruja, som de flor, etc. Mistura-se os papéis, cada um pega o seu, e em grande roda temos de elaborar esse bom e em seguida os demais repetem. Essa atividade, podemos considerá-la meramente vocal, mas percebemos a presença do tônus corporal ao executarmos o som, percebemos uma figura, uma reação corpórea ao som, logo, a voz possui a sua corporeidade e dela necessita. 
Ao afirmar que a “voz é corpo” e que sendo assim, a ação vocal é formada pelos mesmos elementos constituintes da ação física — impulso, intenção, élan, energia, organicidade e precisão — Ferracini chama atenção para o ponto de onde se originam os impulsos físicos e vocais, o centro orgânico do corpo, ou Koshi.  (FINARDI, Ângela. 2011, p. 5)
      Na nossa experiência na aula de Voz II do dia 26 de julho deste ano, eu e o grupo que se formou da atividade de "figuração da voz", precisamos elaborar uma partitura vocal a partir dos sons que adquirimos aleatoriamente. Não havia, necessariamente, a necessidade de um trabalho físico, contudo, precisamos nos plugar internamente para externar esses sons e, respectivamente, a partitura de maneira orgânica, e como fazê-lo orgânico sem a manifestação do corpo? Perceberemos no vídeo uma presença cênica. Éramos as sombras da Alice: 



       Eu era o Ódio. A ação vocal do ódio exprime peso e exigiu um tônus vocal e corporal aparente e preciso. O corpo e voz são um.

      Essas impressões me têm feito pesquisar em casa e na frente do espelho possibilidades de evocar um tônus vocal que se contraponha ao tônus corporal. Tenho feito esses testes me utilizando da música. Cantar sem expressão, porém, a música apresenta uma facilidade desse tipo de teste uma vez que possui uma linha melódica clara e definida e não gera incidências como numa cena, o que não descarta a possibilidade de me utilizar da música em cena e provocar incidências ou pelo menos estar exposto ao não-saber que incide. 

       Um outro exemplo desse diálogo corpo-voz indissociável, aconteceu nesta cena cuja proposição verdadeiramente contemplou todos os sentidos, mas, seria possível o mesmo tônus corporal enquanto a voz estaria num polo oposto? Fica esta dúvida. 



       Uma outra proposição que tenho feito a mim mesmo nessa possível busca de contraposição do tônus vocal em relação ao tônus corporal, me tem levado à pesquisa de imagens para imprimir nelas uma voz que contraponha o que é evidenciado, ocorre que, absorvê-las em cena para fazer esse trabalho empilhado de materiais internos e externalidades, eu conseguiria esse tônus, essa força contrária? Eu conseguiria contrapor Fala Interna e Fala Externa? 





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Notas

¹ Ver experiência em http://intrateatro.blogspot.com.br/2016/03/a-voz-que-nao-saiu.html
² Link da aula http://intrateatro.blogspot.com.br/2016/05/poemas-analogos-acoes-equivalentes.html


Referências Bibliográficas 

ARRUDA, R. K. Arranjo e Enquadramento na Política do “E”: Por Uma Pedagogia do Teatro Híbrida. Urdimento, v.2, n.25, p.176–188, Dezembro 2015. 

BONDIÁ, J. L. Notas sobre a experiências e o saber de experiência, 2002.

FINARDI, Ângela. A voz e sua constituição corpórea. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2011; Mestranda em Teatro; Orientadora: Profª. Drª. Maria Brígida de Miranda.

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do
ator. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.

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