Por Allan Maykson
Ilustração: Daehyun Kim
Desejo falar apenas sobre o meu orgulho, o que me pertence, o que me acompanha e de quem às vezes eu apanho. O orgulho do outro pode se assemelhar ao meu, mas ainda assim será o orgulho do outro. Da mesma forma desejo me expressar assim, em primeira pessoa, porque falo do orgulho que é o único exemplo que pretendo usar aqui sou eu.
O maior desafio para o orgulhoso é assumir o seu próprio orgulho. Mas ouvir isso de uma outra pessoa é avassalador, mais ainda quando a esta pessoa atribuímos algum tipo de afeto, envolvimento íntimo e valor emocional. O que me move hoje a discorrer sobre o orgulho é a experiência de ouvir de fora que tenho dificuldades em assumir os meus erros. E isso foi avassalador. E desejo explicar o porquê, não apenas para me sentir melhor – porque, talvez, seja mesmo esta a postura de um orgulhoso como eu -, mas também porque sinto que quando escrevo consigo compreender melhor quem eu sou, minhas faces, minhas feras.
O orgulho tem duas faces antagônicas: o que se mostra e o que se é. A pessoa orgulhosa é, aparentemente, muito bem resolvida consigo mesma, assertiva, desenvolve bem seus talentos, pode se destacar em algumas áreas da vida, no trabalho, na escola, por vezes ser uma pessoa esforçada e ambiciosa. Esse sou eu.
Em contrapartida, empiricamente afirmo que o orgulho é sinal de fragilidades, por vezes múltiplas, oriundas de diversos encontros em vários momentos da existência do ser humano, cuja as relações, a convivência, a interação, lhe causou maus afetos* – eu diria – que o leva a construir uma máscara resistente, cujo objetivo deveria ser dizer ao mundo que está tudo bem, mas no fundo, o real objetivo é impedir que o mundo descubra suas cicatrizes ou feridas que perduram toda uma vida.
Rollo May (1971), em sua obra O homem à procura de si mesmo me provocou muitos encontros com meu orgulho nestas palavras:
Não há dúvida de que não se deve pensar demasiado bem de si próprio. A humildade coração é característica da pessoa realista e amadurecida. Mas ter-se em exagerado conceito, no sentido de vaidade e autopromoção, não resulta de mais autoconsciência, ou de sentimentos de autovalorização. Na verdade é exatamente o oposto. Autopromoção e vaidade são, em geral, sinais exteriores de insegurança e vazio interior; uma exibição de orgulho é um dos mais comuns disfarces da ansiedade. [...] Quem se sente fraco torna-se fanfarrão, quem se sabe inferior torna-se gabola; flexionar músculos, falar demais, ser obstinado e impudente são sintomas de ansiedade oculta, numa pessoa ou num grupo.
Há três dias me recolhi a pensar sobre o meu próprio orgulho, e tenho certeza que essa “crise” existencial não foi engatilhada apenas pelas palavras de uma pessoa, mas vem sendo processada no meu processo de coach, com Michelle Pucci*, e no processo de criação da minha performance poética musical intitulada Leonardo Sauvignon*. Ambos processos extraem muito das minhas memórias. E poeta que sou, ou melhor, artista, tendo a dedicar muita anergia àquilo que me inquieta. Se me inquieta agora, talvez seja o momento de eu aprender sobre isso agora, mesmo que perdendo.
Vejo o orgulho como no clássico exemplo do iceberg. O que se apresenta aos nossos olhos é ínfimo diante do que se esconde. Oras, o orgulho tem raízes. Ninguém acorda numa bela manhã e diz hoje serei orgulhoso! ou que orgulho de ser orgulhoso. E se alguém o faz, nada mais é do que sua máscara falando. Sim! As máscaras não são só de usar, elas têm seu vocabulário, seu comportamento, seu tônus corporal, suas reações ao inesperado. A máscara é uma pessoa! Uma pessoa que nós mesmos elaboramos inconscientemente para transitar e sobreviver no mundo feroz.
Existem diversas questões que podemos levantar, mas ainda não discutir: a culpa... A culpa da sociedade que implanta padrões inserindo em nosso cérebro um ser ideal, que ao crescer encontrará diversos conflitos entre seu ser ideal e o ser algo que ainda não descobriu? A culpa da ignorância dos pais que não souberam orientar e educar as emoções de seus filhos? No meu caso, a culpa do machismo e suas vastas armas brutais que quiseram dilacerar a sensibilidade, a empatia e a espiritualidade?
Quando eu era criança, me lembro que eu vez ou outra eu chegava em casa com desenhos da escola ou então eu, minha mãe e meu pai, brincávamos de desenhar. Me lembro até hoje como eu desenhava pessoas, casinhas, gatinhos e passarinhos: com traços não muito bem definidos, formas geométricas estranhas, algo entre rasura e forma.
Me lembro de um caso muito específico: certo dia eu desenhei meus simples, magros e rabiscados passarinhos. Meu pai disse empolgado vou desenhar uma águia pra você. E assim, ele desenhava sua estonteante água em grafite, com ricos detalhes e precisão. Era um desenho melhor que o meu.
À medida em que fui crescendo, me tornando adolescente e engordando, meu pai dizia na sua idade a mulherada ficava louca com o papai! ou na sua idade papai já era modelo. Quer ver as fotos? Vou te mostrar as fotos! e assim eu via o deslumbrante e forte corpo do meu pai, jovem, em cima de uma passarela, confirmando o que eu definitivamente não era na idade dele.
Ao analisar esses relatos, um profissional, com olhar cirúrgico poderia compreender a relação entre eles e o fato de eu ter me tornado uma pessoa orgulhosa/frágil. E certamente identificaria que não só me tornei orgulhoso como os efeitos que esses maus afetos reverberaram podem ter causado inúmeros estragos que se externaram na minha relação com o outro, com o amor, com meu próprio pai, com os homens, com minha sexualidade e mais fatalmente, comigo mesmo.
Eu também não tenho respostas, mas tenho tantas sensações, opiniões e algumas certezas sobre os ecos que carrego da minha história. Quando já era mais jovem, ao trabalhar com meu pai a fim de aprender a sua profissão promissora, me via não só deslocado por não pertencer àquilo, mas me via pequeno, humilhado pelo meu pai a cada vez que eu errasse. E não bastava, também presenciava a paciência que eu desconheci a minha vida inteira, ao ensinar e orientar estranhos, que também estavam lá para aprender a promissora profissão do meu pai.
Eu precisava ser bom em alguma coisa, já que eu não sabia desenhar águas, que eu não era modelo quando jovem e nem tinha vocação para a promissora profissão do meu pai, e quantas outras obrigações me foram impostas nesse contexto todo que eu não me lembro, mas que se fazem presentes a cada vez que eu procuro me perceber com autoconsciência.
Eu não paro de buscar. Eu faço graduações, cursos, formações, oficinas, e me ocupo de tudo que eu ache duvidosamente que me fará bem. Eu sou um buscante. E não há mal nenhum nisso, nem em buscar aprender, tampouco em buscar a mim mesmo. O mal se hospeda em duas situações: no quanto eu me escravizo por um misterioso vazio e quanto minhas sombras atingem ao outro.
Ouvir você é orgulhoso ou você tem dificuldade em assumir os seus erros soa tão impactantemente quanto ouvia nos tempos de infância você é um viadinho.
Nós somos assim. Todos somos assim. Temos os nossos gatilhos que despertam faces que há tempo adormeciam em paz, ou sem paz, esperando ansiosamente a primeira vítima para dar o bote mortal.
Os gatilhos atualmente tem sido cada vez mais efêmeros. Mas são os gatilhos de uma sociedade doente. Mas hoje não venho falar de outro doente: eu. Doente de mim mesmo, dessas minhas fatias obscuras que ecoam dentro de mim. Se ecoam dentro é menos prejudicial – entre aspas -, mas quando são emitidas de um outro, é dolorido. Nesse momento tiramos as máscaras e mostramos esse “quem também somos”. É horrível ser esse “alguém”. Dói tanto. É como uma pedra que atravessa as veias onde deveria correr apenas sangue. Ou como um comprimido maior do que a garganta está habituada. E o corpo se defende. O corpo se defende incontrolável. É tão feroz com o emissor quanto o é com a alma que o faz funcionar.
Em meu processo de coach tenho me encontrado pontualmente com meus complexos. Existiam outros, muitos outros, que foram se desconstruindo aos poucos durante a minha formação em Arteterapia e em Artes Cênicas. Eu me transformei. Mas ainda restaram migalhas de sofrimentos nos escombros de toda essa desconstrução.
Eu disse à Michelle, minha coach e pessoa que admiro com a alma, que eu poderia reiniciar um processo terapêutico, mas neste momento o caminho com ela tem me dado mais clareza no meu olhar desatento. Nós chegamos a um ponto onde o meu pensamento não parou de sair: o que meu pai fez comigo? E também: o que farei com o meu pai? Me refiro ao pai que está dentro de mim até hoje, e que tenho notado que já não é tão o mesmo pai atualmente. Mas, podemos falar sobre isso depois.
Eu preciso falar sobre o meu orgulho, sobre as minhas
FERAS
Elas vêm. Vêm velozes
Saem dos algozes de nós
Lá no profundo.
Num minuto só destroem
Engolem. Atingem.
É assim. Feras involuídas.
Que ficam à espreita
Esperando dilacerar
A próxima ferida.
Fere a nós
Mas sempre encontra uma vítima.
Estou com minhas feras adoecidas
Porque feras saudáveis
A gente controla, ouve, cuida.
Feras não ditas gritam
A nós mesmos sucumbe.*
Me tornei orgulhoso – eu acho. Essa foi uma forma de defesa que minha psique deve ter encontrado para não permitir que ninguém mais tenha motivos para dizer que eu não sou bom. Eu quero ser bom o tempo todo. É uma escravidão que me deixa perdido, porque não basta ser bom numa coisa só, eu quero ser bom em tudo. E mesmo sabendo que eu não sou bom em tudo, me sinto orgulhoso em afirmar que eu confesso que não sou bom em tudo, mas dizer que sou orgulhoso ainda me fere.
Criei péssimos afetos sobre quem eu sempre fui. A ovelha negra da família, a ovelha frágil, a ovelha tímida, a ovelha inteligente, a ovelha educada, a ovelha recatada, a ovelha cantora, a ovelha atriz, a ovelha poetiza, a ovelha esforçada, a ovelha sonhadora, a ovelha utópica, a ovelha medrosa, a ovelha reflexiva, a ovelha criativa, a ovelha ingênua, a ovelha insegura, a ovelha carente, a ovelha crente, a ovelha pastora, a ovelha mística, a ovelha mágica, a ovelha risonha, a ovelha complexada, a ovelha bastada, a única ovelha-homem entre duas ovelhas fêmeas.
Quando Rollo May fala que o orgulho é a expressão de ansiedade em um livro que intitula O homem à procura de si mesmo, finalmente encontro sentido no porquê falar de orgulho no mesmo contexto de uma auto-procura.
O orgulho é a imponência de uma de alma frágil que não quer ser desvendada. Ele – o orgulho – vela a si mesmo, porque o orgulho é faceiro, traiçoeiro também. É como uma erva-daninha numa árvore vívida. O orgulho é o meu disparo e também meu assassino, meu ponto franco e meu ponto terrível. Eu facilmente repudio a pessoa que fala sobre meu orgulho, é como se ele fosse só meu e apenas eu tivesse o direito de falar dele. Isso me soa tão raiz. Sim! Uma erva-daninha profundamente enraizada. Que me faz perder coisas, amores, boas relações, para ficar com meu orgulho impregnado.
Quando me debruço em meus monstros assim, careço de estar só comigo, de dormir só comigo, de falar só comigo. E dias vêm e vão, e estrou ali, entregue a uma espécie de luto por olhar algo que me deixa morto e pútrido. É como olhar uma sombra preta estirada no chão do meu corpo, uma sombra instalada, inerte, de dar pena.
Uma sombra que se acorrenta, que se apedreja, que se exclui. Acho que depois de tantas palavras, descobri a minha fera mais atroz: o orgulho que me habita. E, não é sábio eu querer me livrar dele, eu preciso evoluir com ele, melhorar com ele, extraindo aprendizados deles. Eu preciso, mesmo orgulhoso, perdoar a quem me fere, assumir meus erros mais pequenos, mais fugazes. Eu preciso me curar das vozes, transformar os maus afetos, reposicionar a minha ira, fertilizar a minha dor para adubar uma flor. Eu preciso me curar de mim. Embora não saiba por onde começar, sinto que aqui já comecei.
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* Me recordo aqui de Spinosa e os afetos. Os afetos passivos ou afetos de tristeza, que diminuem a força de existir e agir, afetar e ser afetado. Ver mais em www.razaoinadequada.com.
* Atriz, cantora, escritora, coah. Ver mais em https://www.michellepucci.com.br/
* Monólogo de Allan Maykson. Uma performance Poética Musical. Ler mais em http://intrateatro.blogspot.com/2018/11/sobre-arte-e-dor-dialogando-com-mostra.html
* Um poema autoral, escrito em 20 de março de 2019, um dia após ter ouvido que sou orgulhoso, desencadeando uma avalanche dentro de mim. Disponível no instagram @allanmayksonlongui
REFERÊNCIAS
MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. 3 ed. Editora Vozes: Petrópolis, 1971.
TRINDADE, Rafael. Espinosa: o que pode o corpo?. Disponível em <www.razaoinadequada.com> acessado em 22 de março de 2019.
Saiba mais sobre Allan Maykson:
Currículo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8044872Z0
Mapa Cultural:
http://mapacultural.es.gov.br/agente/42906/
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