"O termo ação verbal é utilizado por Stanislavski para definir as tarefas que, segundo o diretor, a palavra deve cumprir em cena."
Cristiano Peixoto Gonçalves
A voz, tal qual as fisicalidades, o corpo, dos personagens devem ser um caminho de descoberta, precedido da ação de investigação, uma procura insana por poética, quando a poética está justamente impregnada na insanidade das ações, sejam elas físicas ou vocais, sejam elas não-ações, ações-monstro, ações-devir, mas no fim, ações orgânicas.
O caminho do ator é um caminho de descaminhar, um caminho de desdizer, um caminho de esvaziamento de si, de sorte que este escorra para um "não-eu-meu", assim, tenho entendido que e elaboração e o pensar de um personagem é um ato, fora do palco, de atravessamentos, de resgates, de deslocamentos de materiais auto-biográficos e não-autobiográficos, porém, autorais.
São esses materiais experimentados, excitados, criados, surgidos, acessados, relembrados por meio dos procedimentos cênicos, que permitem o encontro cara-a-cara com QUEM estamos querendo criar. Esse "quem" enquadrado de "si-me", um "si" que pertence a ele mesmo, seus adjetivos, suas características, estética, desenho, em confluência (ou não) com o "me", que sou eu em primeira pessoa, o criador.
Desde o princípio, o trabalho vocal foi o meu maior desafio nas aulas, e hoje compreendo que, o fato de eu cantar, compor e tocar violão, me enquadram numa formatação musical que nunca foi incomodada, meu corpo e minha memória continham as informações básicas necessárias para explorar a minha voz, alcançando tons, extensões, e caminhando entre os ritmos. Quando minha formatação vocal foi incomodada, eclodiu o desconforto e também o constrangimento. Oras, como alguém que canta não consegue realizar procedimentos "simples" com a voz? Um leve constrangimento de alguém que não foi cru para o mundo cênico sabendo apenas o que ia fazer: desenvolver uma pesquisa de terapia com teatro. Pois bem, após tantos desconfortos e as atualizações no meu esquema cognitivo desse novo conhecimento, como diria Piaget, a assimilação e a acomodação, descobrir ou construir uma voz se tornou um dos procedimentos mais incríveis na minha concepção, porque se trata de um outro corpo, um corpo sobre outro, um corpo dentro do outro, um intra-corpo, uma ressonância do corpo. Como diz Renato Ferracini "voz também é corpo". (FERRACINI, Renato. 2001, p. 166)
No meu trabalho no papel da Duquesa, analisando minha primeira partitura, percebi que elaborei todo um desenho corporal, importando partituras de colegas, enquadrando-as por meio das falas-internas e monólogos. Vi um corpo dilatado, extra-cotidiano, porém, eu não estava satisfeito com aquela voz cênica, era uma voz cênica, porém, não estava dialogando aquele corpo, justamente porque não houve uma elaboração vocal até então, a voz cênica que surgiu estava impregnada aos estímulos emocionais e materiais de enquadramento que, atendiam à cenicidade, mas não atendiam à Duquesa. Como solucionar esse problema?
Descobri isso uma semana antes do ensaio da última quinta, 27, dedicado à Cena 6: porco e pimenta, desta minha Duquesa. Analisando o filme Alice no País das Maravilhas, de 1998, percebi que esta minha personagem tinha, vamos assim dizer, uma embocadura que possibilitava uma voz cênica ideal. Vejamos:
Contudo, não me ative a simplesmente repetir aquela embocadura e tentar articular meus músculos para o surgimento do som, não foi o meu desejo de imediato, e hoje vejo isso como um fenômeno sintomático, compreendo que outras coisas encheram meus olhos na Duquesa que não a sua voz ainda, na verdade, internamente não havia surgido a pulsão para uma criação vocal, não havia enxergado ainda a necessidade, até resgatar a partitura para o referido ensaio.
Quando vi aquela partitura toda rica em detalhes, cheia de desenhos e fisicalidades, compreendi a necessidade de uma voz que atendesse ao corpo e também me recordei que toda essa construção bem elaborada não perpassou o corpo-voz, nesse sentido, haveria mais potencial. Então me lembrei de um jogo que fizemos em aula, o "Imagem-Vocal", no qual colocávamos em papéis proposições abstratas de sons para que todo o coro fizesse, propostas como "som de parece branca", "som de tapete", "som de noite", "som de flor". Resolvi aplicar esse jogo comigo e com a Duquesa, até que, pesquisando a embocadura da personagem no filme, encontrei um pluguin interno: o som de furo, aí sim fez sentido aquela embocadura, e obviamente, meu corpo se enquadrou com mais facilidade e encapsulou com mais destreza os sons surgidos para a palavra.
Infelizmente, as imagens não nos permite espreitar esta fisicalidade para a voz, mas, pelas entrelinhas dos desenhos faciais é possível inferir uma construção cênica, resultado desta busca.
______________________________________________________
Referências Bibliográficas
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do
ator. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.
Gonçalves, Cristiano Peixoto, 1977- A perspectiva orgânica da ação vocal no trabalho de Stanislavski, Grotowski e Brook / Cristiano Peixoto Gonçalves. – 2011. 142 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário