sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O SENTIDO DO FIO: O ENCONTRO (PÓS-)PANDÊMICO DA SOCA BRASIL

Há cinco minutos são meia noite. O suor do campo de visão final ainda escorre. Um encontro de resistência que se começa a questionar o sentido dos próprios encontros, esses que partem de escolhas, escolhas que são tomadas a partir de experiências que, traumáticas ou não, tecem a história de cada um, que num emaranhado de vivências se integram, criam um lar, o lar dos sentidos e de consciências nômades e, muitas vezes, órfãs.


SOCA Brasil, a Associação Sociedade Cultura e Arte resistiu aos muros da universidade, superou a ideia de um curso e colheu singularidades. Me vejo contribuindo pouco hoje, devido a uma série de questões outras que me levaram também a fazer escolhas, mas nunca concordei em deixar esse grupo, porque sinto um fio. Fio este que, até então era nebuloso, mas hoje, em nossa reunião de conselho, após quase dois anos de pandemia no país, o fio teceu o seu real sentido.


Existir e criar, criar e existir, existir porque se cria, cria-se porque existe-se. A SOCA é o fio de subsistência que conecta artistas-pensadores de uma colônia (ES) em plena transição e construção cultural contemporânea, onde ainda impera-se as influências mais puras (ou pútrefas) do patriarcado, da burguesia, do clero, do extremismo, do fundamentalismo religioso e tantas outras expressões de opressão.


O “campo de visão” final dizia tudo que somos: corpos simbióticos em afecção, portanto, formas em questão, poéticas no divã, a luz, a palidez, o som; as pausas, as abreviaturas, os passos, o pouco volume, o espaço cru; Um coro de corpo em processo catártico: tivera mais tempo, mais eco, menos regras (do prédio). Um encontro de gratidão.


Eis que, da moto, durante quatro minutos até chegar ao meu portão, penso: eis o fio da questão! Ainda que não tão participante, presente; ainda que não tão envolvido, presença; ainda que (ainda) não construindo, presságio; ainda que não tão atuante, processo; ainda que não como queria, propósito; ainda que nada disso, persistência; e mesmo que menos que isso, permanência. 


O fio da questão é que, mesmo quando não em produção efetiva da minha arte, me lembro que não é o que produzo objetivamente que me faz um artista, mas o que construo subjetivamente também. Não fosse a SOCA, não fosse a Poéticas, me lembraria que um dia fui um artista ou pensaria que nunca deixei de sê-lo?






 

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

PROCURA-SE O MEU DIAGNÓSTICO

Allan Maykson


Há algum tempo, pouco depois de eu vir morar sozinho, as falas repetidas do meu pai ecoam na minha cabeça. “Isso é falta de atenção”. “Tem que ter atenção”. “É o que sempre te falo: atenção”. “Ele não presta atenção”. Foram tantas orações derivadas do substantivo “atenção” na maior parte acompanhada de “falta de”, que ultimamente percebo o quanto isso faz todo sentido. 

Talvez eu sempre tenha sido desatento, por causa natural; talvez eu me tornei desatento – o que acho improvável; talvez eu tenha acreditado piamente que eu sou desatento e potencializei isso. A verdade é que a desatenção tem crescido gradativamente e eu tenho encontrado meus meios de me sinalizar entre os meus multifocos. 

Percebo que há uma desarmonia entre o discurso que está em alta e aquilo que se passa dentro de mim. Parece que não é bom sermos muitas coisas, termos muitas habilidades em diferentes áreas e que a felicidade não é alcançada se não houver um foco, se não fizer uma coisa por vez, sem devanear, divagar, desatinar, delirar, desvairar, discorrer, magicar, fantasiar, vaguear... Se precisa ser assim, sinto que meu lado poeta precisa morrer.

A questão é que papai tem razão. Neste momento, eu olhei para a janela e observei as folhas da jaqueira balançando, iluminadas sob a luz do poste e senti uma brisa atravessar janela à dentro e por alguns segundos me desviei do que estava escrevendo aqui. Percebe? 

Seria assim se eu ouvisse um barulho do apartamento em cima do meu, do vizinho socando alho, batendo roupas, deixando coisas caírem ou lavando louças desajeitadamente – assim eu lavo. Percebe que já me visualizei lavando louças e viram uma dezena de exemplos de quando deixei coisas caírem? É uma mente desatenta. 

Por vezes escrevo coisas como se estivesse escrevendo um texto de teatro. Percebe? Já estou no teatro, me imaginando num monólogo sobre a minha desatenção... Eu não tive uma criação dessas de ir muito ao médico, tampouco ao psicólogo, não era prioridade. Nunca foi. E parece que essa ideia está entranhada em mim. Até hoje eu nunca fui ao psicólogo, mas eu sei que tenho alguma coisa aqui dentro que destoa, que não é o fato de eu ser artista, ou talvez o fato de eu ser artista justifica eu ser assim, meio que, fora de mim. 

Eu não sei discorrer bem sobre isso, nem mesmo parei para estudar essas minhas características, mas me sinto estranho... Acho que não desenvolvi se quer a capacidade de amar. 

Tudo que me atrai
me ofusca de uma forma robusta 
que parece querer me ganhar... 
E me ganha! 
Não penso nas coisas passadas 
Nas histórias construídas 
Nas experiências vividas
Tudo se torna um passado enterrado 
E de repente, eu quero isso agora
Viver o que isso tem para me dar agora 
Um brinquedo, uma roupa, 
Um perfume, um filme, 
Um alma, um namorado... 

Eu faço poemas para conquistar e saborear as coisas que são socialmente condenáveis, que me deixam como o errado. É um desejo tão compulsivo, que atinge a minha moral e envolve os corações dos outros. Chega um momento em que eu enjoo, parece que toda aquela curiosidade emergente é descortinada num instante e toda graça acaba e aí eu me lembro do que é realmente fundamental pra mim: o trabalho, os amigos, o amor... 

Me sinto como uma música descompassada, desafinada, desarranjada, numa dança desenquadrada, num corpo desalinhado... Me tornei adulto e me formei em Pedagogia, que lida basicamente com a construção do sujeito, me especializei em Arteterapia, que o desconstrói para reconstruí-lo, e por fim, terminei as Artes Cênicas, que atua no campo da total desconstrução, desarranjo, hibridização, fragmentação... E foi nela que melhor me encontrei. 

Percebe? Não era para eu falar das Artes Cênicas, mas agora preciso (“que mente desatenta” – diria meu pai. Percebe outra vez?)... Por um minuto me esqueci o que eu iria dizer. Percebe? Se eu não faço agora, já, neste instante, é como uma avalanche que chega, destrói e faz tudo desaparecer. Percebe? No mesmo parágrafo. Percebe? 

Eu ia dizer que nas Artes Cênicas meus maiores dons foram muito bem-vindos: Poesia, música e loucura. Criei coragem, desabrochei, me encarei, deixei o cabelo crescer e depois raspei; emagreci e engordei; chorei e quis desistir, mas resisti; com a minha desatenção eu briguei: estudei mais do que era necessário, mas não o quanto eu realmente deveria – sim! Eu me cobro bastante -  Percebe? 

Me pego encontrando jeitos de otimizar o tempo e o tempo que perco tentando, já foi toda a minha perda de tempo. Quando eu vou arrumar a casa é mais ou menos assim: primeira coisa que olho é a pia. Pia cheia de louças. Antes de lavar as louças é melhor colocar a roupa para bater. Mas antes de colocar a roupa para bater preciso tirar as roupas do varal (isso quando não tem roupa esquecida na máquina); antes de colocar a roupa para bater e começar a lavar a louça, seria interessante cozinhar o feijão, porque demora. Então vamos catar feijão, pegar a panela, encher de água, colocar no fogo, tapar, depois tirar a roupa do varal, jogar na cama, depois colocar as roupas para bater, mas antes dividir em grupos de pretas, brancas e coloridas. Esqueci o que vinha depois... Percebe? Agora que a roupa está batendo e a panela está fervendo, vou usar meu tempo para lavar louça, e quanto terminar a louça, também terá terminado a máquina e quase terminando o feijão. Enquanto lavo louça coloco as “minhas descobertas da semana” no Spotify, e sempre que toca uma música que gosto, preciso interromper o lavar das louças, enxaguar as mãos, secá-las e colocar a música em alguma playlist: “Allan Maykson”, “Poéticas Teatrais”, “instrumentais”, “Para aprender”, “dormir”... Agora que salvei, volto a lavar louça. E qual seria a melhor forma para otimizar meu tempo? 

Primeira opção: Ensaboar primeiro as panelas, depois os plásticos, depois os talheres, depois lavar a pia. Após isso, secá-las sem uma sequência definida e guarda-las nos armários. 

Segunda opção: Ensaboar todas as louças, depois enxaguar todas, secar todas e guardar todas. Uma coisa de cada vez. 

Terceira opção: Ensaboar, enxaguar, secar e guardar item por item. Primeiro as panelas de uma a uma, depois os plásticos de um em um, e por fim os talheres, mas sem paciência para secar um por mim, sacudo, sopro, ou sei lá o quê, e guardo no armário molhadas mesmo. 

Já testei as três opções mais de uma vez, mas nada consciente, é porque me perco mesmo em qual estratégia utilizar. Sim, eu penso bastante em estratégias. Mas quase sempre elas não são tão estratégicas assim... 

Livros? Tenho vários começados. Tenho livros perto da cama, na escrivaninha, no guarda-roupa e três no banheiro. Todos começados neste ano. Me refiro aos da cama, do guarda-roupa e os do banheiro também... Letras? Eu pulo letras. Nem corrigi este texto, nem revisei, porque eu sei que em algum lugar vai ter coisa faltando dentro de uma única palavra... 

Eu consegui duas premiações importantes no curso de graduação em Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, o de Aluno Destaque do Curso e o Mérito Acadêmico. Durante o curso eu desenvolvi vários trabalhos acadêmicos, por exemplo, obtive bolsas de estudos nas três Iniciações Científicas e escrevi um artigo para cada uma, também desenvolvi dois projetos de extensão. Precisei ler muitas coisas e foi muito desafiador, porque parece que o conhecimento não grudava muito sem eu agregar com outras formas de fixação, como uma prática, livres associações, outras criações, reformulações... 

Eu sempre deixei tudo para a última hora. Até meus trabalhos de conclusão de curso. Todos eles. Das duas graduações e das duas pós-graduações. E o pior, eu me sentia mal, preguiçoso, inútil, burro, e claro, desatento. 

Minha mãe sempre soube comprar roupas para mim melhor que eu. Raramente eu fazia essas escolhas. Graças a Deus. Seria um tormento escolher entre tantas opções. Então, era mais fácil alguém escolher pra mim minhas camisas, sapatos, calças, cuecas, perfumes, destinos, datas, escolas, escolhas... Escolhas? Sim! Se tornou mais fácil alguém também escolher qual seria a minha melhor escolha. 

Várias vezes, muitas vezes, eu quero comer alguma coisa que eu ainda não sei. Pego minha moto e vou procurar um lugar. Que tormento! Eu rodo em todas as ruas pelas quais já passei, vou em frente em todas as lanchonetes que já entrei, digo que quero um lugar diferente, mas sempre tem muita gente e sinto que demorar, daí eu volto para o mesmo lugar que eu havia pensado antes. Lembro de ter ficado quase uma hora circulando pela cidade. Quando em grupo é mais fácil, várias pessoas decidem e eu gosto de experimentar coisas novas. Mas, ainda me vejo ligando para mamãe para saber qual será a melhor escolha... 

Eu costumo demorar mais de 20 horas quando, quinzenalmente, preciso cozinhar as marmitas para congelar, arrumar a casa, lavar a louças, roupas e o bendito banheiro. Sublinho que moro num kit net. Eu divido a atenção com o spotify, com o whatsapp, com minhas brincadeiras de cantar, de repente paro e todo uma música que gostei, faço uma live, daqui há pouco estou no guarda-roupa tirando roupas velhas para doar, e se sinto que acabou o açúcar para o café de mais tarde, eu vou ao supermercado para comprar, e quando vi, fiz a compra do mês e comprei coisas que nem sei se vou usar. Toca uma música que me remete a uma memória, e logo paro no canto pra chorar, escrever, me debruçar numa dor que já sofri tantas vezes. Muda a música e já lembro de outra situação em que fui burro, arrogante e intolerante, e me vem um remorso e uma vontade enorme de ligar e pedir perdão... Outra música e desejo dizer ao passado que estou com saudade e de repente caio na consciência de que isso não vai ser bom pra mim e que preciso domar meus instintos. 

E o medo das coisas antes que elas aconteçam? E o medo dos meninos bonitos do aplicativo? E quando construo uma vida inteira com casa, filhos, casamente e até os problemas ao lado de alguém? Os pensamentos pesam tanto que eu invento desculpas para a pessoa desistir de mim. É muita fuga! É autossabotagem demais. Os pensamentos repletos de futuro, amarrados ao passado, um passado que eu custo aceitar que passou. E isso me desperta o medo de amar de novo, porque acredito que aquele passado não acabou. Mas acabou sim! Eu é que não quero aceitar! 

Não falei ainda que, quase sempre, não me acho merecedor do melhor. O melhor pode ficar com os outros. O meu melhor também. Eu não preciso do melhor, sendo que o medíocre me satisfaz. Amor demais? Doação demais? Me cansam! Por que será? Porque não mereço... Alguém que me dê coisas, presentes, viagens?! Não, eu não mereço. Eu quero estudar muito e trabalhar muito para me dar essas coisas sem precisar de alguém. E me pergunto: eu quero provar para quem que sou capaz? E que mal há em ser amado e ser valiosamente presenteado? Meu Deus! Eu quero chorar! Pausa!... Eu voltei a olhar a janela e as folhas da jaqueira balançando com a brisa iluminadas com a luz do poste. 

A grande verdade é que no fim, talvez, eu nem precise de um norte, mas precise mesmo é de um diagnóstico que justifique tanta desatenção, junto com egoísmo, talento, ambição, sonhos, falta de vontade... o que será isso? Coisa de artista? Artismo? 

16 de setembro de 2019